Minha vida mudou
sem que eu percebesse.
Fora um simples
instante, um único momento de desatenção, um piscar de olhos. Sonhei por
segundos e, ao despertar, tudo estava diferente, tudo fora tirado de mim. Pouco
antes, estava deitada em minha cama, sentindo a fragrância do perfume de rosas
acomodar-se em minha pele, agraciando meu corpo com a jovialidade e o feminismo
que deveriam surgir naturalmente, mas exigiam de mim um cuidado extra. Esticava
os braços num espreguiçar indelicado, incapaz de me tranquilizar pela situação.
Em dias comuns,
estaria ali, atirada nos travesseiros com um livro, apoiando os cotovelos no
estofado de meu colchão para acalentar a leitura de uma obra de fantasia.
Agora, entretanto, as coisas eram diferentes. Não havia calmaria, não havia
tranquilidade. Eu estava lá, deitada, descansando por uma fuga que fez de minha
família farrapos. Não fugíamos da polícia, ainda que preferisse esta situação,
ou qualquer outra, do que afrontar aquela realidade temível que nos assolava. Fugíamos
do sobrenatural, daquilo que desejava nos devorar. Um surto inesperado,
espalhado de maneira avassaladora pelo estado de São Paulo, uma verdadeira
praga. Alcançou meu lar sem dificuldade alguma, estendeu seu manto caótico
pelas ruas turbulentas da movimentada Taubaté. Tentamos ignorar, fingir que
nada acontecia, mas não havia fuga. Estávamos enfrentando o fim do mundo,
assistindo ao fim de nossas vidas.
Além de sobreviver,
nada mais restava.
Por esse motivo, e
por alguns outros de pouca importância, eu apenas me espreguiçava por ter de
espreguiçar, esticando meu corpo ao limite após um exercício que não tinha o
costume de praticar. De súbito, o momento silencioso se alternou numa
catástrofe, ouvi gritos. Senti a pele esfriar, sem entender. Meu corpo não se
movia, recusava as ordens apavoradas que meu cérebro despejava. Os gritos
aumentaram, minha visão falhou, nauseei. Tentei me levantar da cama, apoiar nas
paredes, algo me feriu. O sangue escorria de um corte acima de meus seios,
transparecia as curvas adolescentes em minha blusa mais nova, misturando a
vermelhidão de minhas energias ao suor de minha exaustão. Gritos, pancadas,
estrondos, o raspar de garras nas paredes. Aquele desastre seguia-se
ensurdecedor, atrapalhava meus sentidos, que por si só já estavam confusos.
Então, tudo voltou
ao normal.
Talvez não normal,
mas algo assim. Senti-me enxergando bem, capaz até mesmo de me livrar dos
óculos. Pisquei, esperei que a visão deixasse de turvar, espantei-me com a
primeira imagem que recepcionou meus olhos castanhos: minha família.
Ao meu redor,
cheirando à podridão, despejando suas vidas por todo o quarto. Pedaços de
línguas, nervos e estômagos se espalhavam por todo o chão, acompanhados de
minhas coleções de filmes e revistas de rock. Agonizaram por suas mortes
grotescas, meu pai, minha mãe, minha irmã mais nova. Mortos, todos eles,
destroçados de maneira violenta nas proximidades de meu corpo. Eu enxergava
perfeitamente, mas preferiria nunca mais enxergar na vida. Daria minha
sobrevivência a eles, se pudesse. Daria tudo para ter a minha família de volta.
Infelizmente, não
seria possível.
Chorei, ou algo
similar àquela sensação de tristeza. Lágrimas escorreram por meu rosto, mas me
confundiram o paladar, que as flertava ansioso pelo sabor de sangue que alcançava
meus lábios. Talvez estivesse ferida nas bochechas, o choro se misturava ao
sangue. O que importava? No fim, eu estava ali, viva, e todos eles mortos.
Todos os que amei, todos aqueles por quem fiz sacrifícios, por quem faria muito
mais. Todos aqueles que me amaram, que retribuíram minhas carícias, que me
mostraram o verdadeiro significado do mundo, da vida, da existência.
Na verdade, não
todos.
Restara um. Minha
única esperança.
Ele morava longe de
mim, mas logo estaria ali. Sempre dava um jeito de chegar até minha casa, seja
um ônibus, uma moto ou mesmo uma bicicleta. Sempre estava lá, mesmo quando eu
mandava que não viesse, mesmo nas horas em que acreditava que nosso
relacionamento realmente estivesse terminado. Era um bom garoto, um bom homem.
Mais velho, responsável, ainda que bobo. Logo estaria ali, meu amado, minha
última esperança.
Eu só precisava
sobreviver.
Olhei ao redor, não
havia ninguém. Apenas corpos, sangue e morte, para todos os lados. O
responsável por aquela atrocidade fugira, a janela estava aberta. Tive sorte,
como sempre. Uma qualidade, uma vantagem talvez, mas que sempre me custara ver
os outros ao meu redor perderem tudo enquanto eu me dava bem na vida.
Esgueirei-me pelo meu próprio quarto, tomando cuidado para não fazer barulho naquele
cômodo onde o Heavy Metal urrava até altas horas da madrugada. Parecia ironia.
Empurrei uma pilha de roupas com os pés, livrei-me dos obstáculos que me
impediam de caminhar. Cambaleei pela minha casa, sentia uma tontura descomunal.
Abri a porta de meu guarda-roupa com os braços fraquejando, o movimento
arrastou a cabeça de minha irmãzinha, meu pranto me torturou.
Encontrei a
escuridão que armazenava minhas vestimentas. Diversas, inúmeras peças de uma
luxúria desperdiçada. Joguei tudo ao chão, deixei que os vestidos claros de
formatura se banhassem no sangue de minha família. Entrei, fechei a porta,
ignorei o medo de escuro. Teria de esperar, de me esconder, calar meu
sofrimento até que meu herói estivesse ali, pronto para me salvar.
Sozinha no breu de
um porta-objetos, afastava a insanidade com palavras gélidas e de pouco
significado:
—Ele está chegando,
Lilian. Ele está vindo para te salvar.
Ele era o meu amor.
Minha única esperança.
Senti fome.
***
O cheiro de esgoto
me incomodava as narinas, mas não havia esconderijo melhor do que aquele.
Não eram bem
túneis; estavam mais para ruínas, destroços da rede de esgotos da cidade, uma
trilha que encontrei por acaso após perder meu carro numa batida. As ruas onde
brinquei durante minha infância estavam destruídas, guiavam até paredes de
impedimento ou hordas daqueles seres. Afinal, o que eram aquelas coisas?
Gostaria de arrumar um título diferenciado, algo distante dos filmes e livros
que tanto me aterrorizaram a juventude, mas não havia nada além daquele termo
bastante conhecido: zumbis. Descerebrados, descontrolados, famintos pela carne
e pelo sangue e pelo cérebro, tudo aquilo que não mais lhe serviam.
Zumbis.
Era difícil
acreditar, mas mais difícil ainda era agir após encontrar um deles. Não sou o
tipo de valentão de escola, disposto a enfrentar qualquer pessoa maior do que
eu sem temer, muito menos uma criatura que sequer vive. Busquei aquilo que
jazia aos meus pés, fossem pedras ou barras de aço, pedaços de metal ou aros
restantes de um veículo esmagado pela fome daqueles monstros. Golpeava com toda
minha força, esmagava as pernas e os torsos, feria as cabeças com as peças de
metal desfiado. Não havia sangue, muito menos dor ou gritos. Gemiam, recuando
alguns passos pela tortura de suas mentes deformadas, então voltavam a avançar,
esticando os braços em busca do alimento, da refeição, daquele que invejavam
por viver. Logo entendi que minhas opções eram míseras, e a melhor delas era
correr, fugir, se esconder.
O subsolo me
pareceu tentador assim que encontrei aquela entrada inesperada. Abandonei o
carro de imediato, dane-se o valor daquele bem material. Minha carne não custou
preço algum, mas me importava muito mais com aqueles músculos atrofiados pelo
sedentarismo. Abri a porta contra dois mortos-vivos, empurrei-os para longe com
um impulso no estofado, saltei e corri enquanto minhas pernas suportaram. Pisei
em falso uma vez, tropecei, me recompus em milésimos, o pavor me mantinha
atlético. Forjei uma escadaria nos destroços e penetrei no subterrâneo da cidade
onde nasci, um lugar que jamais pensei conhecer.
Gostaria muito de
um encanamento em circunferência no subsolo de Taubaté, mas não era aquele o
caso, portanto, tinha de comprimir meus cento e oitenta centímetros para que
conseguisse trespassar aquela nojeira aquosa que impregnava meus tênis.
Arrastava os pés, patrulhando como fiz uma vez antes, no militarismo teatral
das forças armadas. Apoiava nas paredes imundas quando era necessário, num
tropeço ou mesmo quando as substâncias acopladas ao solo nauseante pareciam
prestes a me aprisionar como uma corrente de fezes e urina. Por vezes tive de
me ajoelhar, evitando partes de concreto e metal tombado de automóveis ou
construções desabadas. Se aquele não era o fim do mundo, não sei o que seria.
O que realmente me
assustava era o súbito da situação. Ninguém esperava por aquilo. Sem aviso,
como se desperta de um sonho, fomos invadidos por criaturas comedoras de gente
viva, adornados com seus murmúrios lamuriosos numa marcha incessante para
saciar aquela fome infindável. Não houve explosões, chuva de meteoros nem nada
do tipo. O apocalipse veio do solo, caminhando com pressa, incapaz de carregar
o poder colossal e destrutivo de um terremoto, uma onda gigante ou uma erupção
vulcânica, mas nem por isso tínhamos facilidade em sobreviver. Deixei-me viajar
em pensamentos, arquitetando planos de fuga e caça, refletindo em possíveis
lugares para encontrar mantimentos e, tenho de confessar, em luxos que poderia
conseguir gratuitamente naquele momento onde loja alguma estaria de lojas
fechadas e alarmes ativados. Acima de tudo, pensava nela, em minha amada, a
única pessoa naquela cidade capaz de mudar a minha vida, meus hábitos e, mesmo
nos piores momentos, estampar um sorriso gracioso em meu rosto.
Lilian.
Ela estava longe,
em sua casa. Muito antes, quando todo aquele pesadelo começou, mandou-me uma
mensagem trêmula, contornada pelos corretores ortográficos de seu aparelho
celular. Dizia: As coisas estão péssimas, Thomas. Preciso de você! Eu te amo!
De suas três frases, a que mais me chocou foi a primeira, pois, para Lilian, as
coisas nunca estavam péssimas. Imaginei que aquele distúrbio que avassalava
nossa cidade teria alcançado seu bairro muito antes do meu e, assim, ela logo
se tornaria alimento para as criaturas desprovidas de raciocínio. Tentei evitar
o pessimismo, mas a cada instante aquelas sensações se pareciam mais com o
realismo, com situações que pareciam impossíveis de se evitar. A cada vez que
fechava os olhos numa piscadela, via seu corpo estirado em minha mente,
ensanguentado pela infecção, tomado pela praga que assolou o interior de São
Paulo e além.
Perdido naqueles
pensamentos, não escutei quando uma bolha suspeita estourou num canto mais
profundo daquele rio de imundice.
Alguma coisa se
moveu, percebi de imediato. Interrompi os movimentos, respirando com suavidade
para evitar arfar no pavor do momento. Corri os braços nas proximidades,
encontrei um cano solto num reservatório qualquer, arranquei-o do lugar com um
puxão bem colocado. O ranger do metal ecoou na escuridão, seguido de perto por
um ruído macabro, similar ao ronronar de um felino. Com as pernas trêmulas, ergui
um dos braços, deixando o golpe preparado para a necessidade. A mão livre
tateou minhas vestes para encontrar o celular, umedecido pelo contato com o
esgoto mas, por sorte, ainda funcional. Abri o flip do eletrônico com os dedos,
deixei que a luz fraca iluminasse o caminho à minha frente.
Estremeci.
Havia algo ali.
Algo que contaminou todos os meus pesadelos pela eternidade.
As presas curvilíneas
se uniam como um zíper, deixando o sorriso tomado por uma loucura
sanguinolenta, repleto de guinchos e espasmos corpóreos, prova de que a mutação
já mutilara toda a humanidade que restara naquele corpo. Unido à aguaceira
pútrida daquela região, a criatura tinha guelras e nadadeiras, espalhadas numa
pele mórbida e acinzentada que exalava o cheiro de morte passada. Seus olhos
não tinham brilho ou vida, eram nada mais que esferas alvas, sem pupilas ou
íris, ou mesmo cílios abaixo das sobrancelhas. Pedaços da cútis se desprendiam
dos braços e das pernas, e o corpo despido era uma monstruosidade por si só,
deixando que os órgãos pendessem por aberturas na altura do estômago, sacudindo
feito pêndulos apodrecidos e fétidos.
Sem pensar duas
vezes, movi o cano num ângulo perverso, atingindo a têmpora daquele ser
sobrenatural, senti seu crânio trincar abaixo do metal. Insuficiente para
derrubá-lo, obviamente, e logo voltou-se para mim, guinchando em sua fome
anormal, agarrando meu corpo com suas mãos congelantes. Ataquei outra vez,
gritava sem perceber, e quem não gritaria? Chutei seu corpo para longe, arqueei
o cano como uma espada medieval, desloquei o maxilar já estragado pela doença.
Recuei um passo, preparei um novo golpe, senti algo diferente sob meus pés. Havia
outro daqueles monstros, saltando sobre mim como uma piranha devoradora de
homens. Esquivei-me por sorte, tombando com meu jeans recentemente adquirido
numa poça de vómito de um bar das ruas superiores. Nem mesmo tive tempo para
reclamar, levantei-me e corri. Não havia como enfrentá-los, eu sabia. Precisava
correr, fugir.
Precisava
sobreviver, pois apenas assim encontraria Lilian.
Viva ou morta.
Voltei o caminho
que fiz uma vez antes, satisfeito apenas quando avistei a iluminação da
superfície surgir vagarosa naquele encanamento sinistro. Os monstros estavam
atrás de mim, arranhando as paredes e chutando a asquerosidade daquele local
nas minhas costas, mas não me importava. Escalei com presteza, jogando o corpo
para o solo pavimentado das ruas centrais de minha cidade enquanto as criaturas
urravam pelo mantimento que fugia de suas garras. Virei-me para elas uma última
vez, atire o cano na direção do olho da mais próxima. Levantei o dedo médio
como um aceno, apesar de saber que elas não entenderiam. Era um gesto para mim,
não para elas.
Quando retornei, o
sol já parecia prestes a desaparecer no céu. Era um fim de tarde cinzento, pois
mesmo as nuvens pareciam infectadas por aquela doença misteriosa. Naquela
confusão de veículos inertes, encontrei uma motocicleta funcionando. Estava
ligada, atirada na rua como se abandonada para uma fuga desesperada. Levantei-a
apressado, testei o acelerador e a embreagem, perfeitos. Uma pequena alteração
na roda dianteira tornava as curvas um tanto desreguladas, mas não havia tempo
para o conserto. Acomodei-me no banco acolchoado daquela Yamaha de anos
anteriores e acelerei, desprezando a utilidade dos capacetes de proteção, como
se não houvesse amanhã.
Afinal de contas,
talvez realmente não houvesse.
***
Eu estava no escuro,
sozinha. O silêncio era a maior das torturas, uma melodia fúnebre e pavorosa
que enlouqueceria as pessoas mais frágeis. Como eu. Uma garota, uma adolescente
fragilizada por uma situação de guerra, um momento em que a hostilidade é comum
até mesmo para seus próprios familiares que, sem que saibam, podem estar
contaminados pela praga que se dispersou naquela região, assim como em tantas
outras.
Havia brechas
miúdas em meu guarda-roupa, e elas eram as responsáveis por minha respiração.
Mantinha-me encostada nas portas, tragando o ar que conseguia trespassar
aquelas míseras frestas na madeira, sem desejar enxergar o que acontecia do
lado de fora de minha fortaleza artificial. A curiosidade, entretanto, logo me
venceu. Abri os olhos, forçando o rosto contra aquela superfície lisa e calorosa
do móvel, ainda que no momento parecesse tão fria quanto o restante de minha
casa. Semicerrando um dos olhos, como quem faz mira num armamento para
focalizar seu alvo, busquei os corpos dos meus pais no exterior daqueles escudos
de mobília, mas não os encontrei. Estavam lá até pouco tempo atrás, mas agora
não havia nada. Barulhos, entretanto, se espalhavam com uma voracidade cada vez
maior, ruídos de um mastigar esfomeado, como um cão de rua presenteado com uma
baciada de carne fresca e macia.
Num vestígio de
esperança, busquei pelo corpo de minha irmã, decapitada num momento
imperceptível. Ela estava lá, encontrei seus olhos congelados num susto
momentâneo. Seu corpo, no entanto, não estava abandonado como sua cabeça.
Estava atirado, de braços e pernas abertas, as vestes arrancadas permitindo que
sua nudez infantil ficasse à mostra. Acima dela, meus pais.
Vivos, ou o mais
próximo disso que poderiam estar.
Mastigavam a carne
da filha mais nova como se nunca a tivessem conhecido, agachando-se sobre seu
corpo miúdo numa disputa feral pela maior quantidade de alimento. Vi quando meu
pai arrancou um dos tornozelos da caçula, facilmente livrando as juntas de seus
ossos do restante da perna, e logo aquela peça humana desbravou os ataques
ferozes de suas arcadas dentárias, ferindo a gengiva e revirando entre os
lábios ressecados daquele monstro meio-morto. Minha mãe, do outro lado,
arrancava os olhos da filha com os dedos desprotegidos, mascava-os como uma
goma de mascar tenebrosa, o que me trouxe a vontade de vomitar. Cobri os lábios
com as mãos, uma sensação incômoda, estranha. Não era nojo.
Era inveja.
Eu estava com fome.
Queria ter nojo, mas estava faminta, o estômago dentro de mim parecia um ser
vivo e consciente, livre dos domínios de meu cérebro. Implorava pelo contato
com a carne, com o sangue, com um alimento cru. Ignorei aqueles pensamentos,
estava enlouquecendo. Senti-me suar frio, mas tudo estava frio ao meu redor.
Minha pele, minhas genitais, meus ossos, tudo parecia prestes a congelar.
Como um cadáver.
Um cadáver vivo e
faminto.
***
Naquele momento, eu
era o melhor piloto de minha cidade.
Talvez fosse o
único, não sei, mas me arrisquei em curvas intensas, desviando daquela horda
repugnante, assistindo enquanto partes de seus corpos pútridos despencavam ao
solo, tentando entender as motivações dos monstros que seguiam lado a lado e,
num surto repentino, se atacavam, mordiscando a carne alheia e devorando a si
mesmos num desespero mútuo pelo ato de mastigar. Desviei-me de alguns dos
seres, ainda que a vontade de atropelá-los fosse grande. Estava em uma
motocicleta, não uma arma. Ainda assim, quando possível, me aproximava de algum
monstro daquele e o chutava sem diminuir a velocidade, empurrando-o nos
destroços ou num abismo rústico.
Acelerei, deixei o
centro da cidade para me dirigir a um bairro mais afastado, onde meu amor me
esperaria. Ou não, mas não queria pensar assim. Esforçava-me para colocar na
cabeça a sua imagem sorridente, a mesma que me encantara anos antes. Ela estaria
lá, escondida e viva, esperando pela minha chegada. Queria ligar, mas me dei
conta de que perdi o celular nos esgotos, durante a fuga. Sem contato,
restava-me torcer para que a gasolina restante naquela moto fosse o suficiente
para me levar até meu destino.
Olhei à frente,
havia algo de estranho. Escutava o alarme de um carro, disparado pelo frenesi
de uma turba revoltada. Ouvi gritos, pessoas, vivos aprisionados entre um
mutirão de braços e dentes. Estavam dentro de seu próprio veículo, mas o
esconderijo era falho. Com o vidro quebrado, os mortos se atiravam para dentro
do carro, arrancavam pedaços de uma garota de cabelos loiros e seu parceiro, um
homem mais velho, de rosto rústico e barba por fazer. Enquanto ele socava as
criaturas com uma pulseira metálica enrolada nas mãos, sua companheira tinha os
seios arrancados por presas vorazes. Indefesa, gritou até o momento de sua
morte, e ela mesma se reergueu na direção de seu amado, arrancando-lhe pedaços
da têmpora e da nuca, e só então os socos cessaram. Os gritos deram lugar a
gemidos, e novas criaturas surgiram ali, em minha frente.
Torci o acelerador
como nunca achei que faria antes.
Estava próximo da
casa de Lilian quando avistei uma viatura de polícia. Aproximei-me, as sirenes
piscavam, sem produzir ruído algum. Percebi que as luzes não atraíam as
criaturas, diferente dos ruídos. Parado ao lado da janela do veículo, percebi
que dois policiais —uma ruiva de sardas no rosto e um negro – estavam mortos,
com as coxas e o peito triturados, respectivamente. Não se reergueram, talvez
por terem cortes intensos na altura do pescoço, deixando que as cabeças
pendessem numa linha única, uma decapitação falha resultante numa cena
grotesca.
Era uma cena
triste, mas não havia tempo para chorar. Encostei a moto e desci, corri até
eles, encontrei os revólveres municiados em suas cinturas. Peguei ambos,
conferi as munições, estavam todas lá. Travei um deles, guardei-o na cintura, o
outro não abandonou minha mão, por segurança. Atirara uma vez antes, quando
membro do exército, mas ainda me recordava dos princípios básicos. Respiração,
acionamento do gatilho, fotografia do alvo, não necessariamente nesta ordem.
Escutei gemidos, e
vi que a motocicleta que utilizava já servia como pista de dança para alguns
mortos descontrolados. Era um bom meio de transporte, infelizmente perdido. Não
havia escolhas. Abri a porta da viatura, puxei o corpo da ruiva para fora, os
monstros a atacaram com uma violência descomunal. Sentei-me em seu lugar, mas
não sem antes me livrar do copiloto cadavérico, pois ninguém gostaria de
dirigir ao lado de um homem que logo poderia se levantar e atacá-lo. Fechei
ambas as portas, tentei erguer os vidros, estavam fechados. Liguei as chaves e
parti, deixando para trás os corpos dos policiais, devorados por uma horda cada
vez maior daquelas criaturas horrendas.
Não era um bom
motorista de carros, a autoescola não me ensinou o que deveria saber. Muito
menos como pilotar num mundo infestado por zumbis, obviamente. Tive que me
virar, girar o volante como uma manobrista de filmes americanos, fazer curvas
queimando pneus. Subi um morro similar a uma montanha, estava próximo. As
pessoas saíam de suas casas, todas mortas, gemiam lamúrias de suas fomes
doentias. Saltavam na frente da viatura, destroçados pelo movimento das rodas
incessantes. Diferente da motocicleta, com o carro eu poderia atropelar todos
eles sem me incomodar, e assim o fiz. Via no retrovisor quando as criaturas se
erguiam, uma perna ou um pedaço do torso triturado pelo motor do veículo não
lhe eram empecilhos. Rastejavam quando destruídas da cintura para baixo,
seguindo o caminho infindável de suas mentes falhas e confusas. Muitos deles,
cada vez mais, atraídos pelo ronco do motor, pelo cheiro de sangue e carne
fresca.
Terminei de subir,
avistei um abismo. Uma praça servia de lar para incontáveis mortos, todos se
viraram para mim ao notar a presença de um novo ser vivo. Encontrei, por acaso,
um botão para o acionamento das sirenes, para que o som gritante do alarme
policial estrondasse naquelas ruas. Tive uma ideia peculiar, mas minha única
opção. A horda parecia infinita, formava uma parede em meu caminho; jamais
conseguiria passar por todos eles. Virei o carro na direção do abismo, peguei
um objeto qualquer que encontrei nas ruas, esticando o braço através da janela.
Ajeitei a marcha, como vi nos filmes, empurrei o acelerador com aquela peça de
madeira simplória, abri a porta. A sirene estridente convocou a todos para um
salto mortal, eu me atirei para fora do veículo. Senti os cotovelos ralarem,
torci um dos pés no salto, mas assisti, inerte, conforme uma multidão de
criaturas se atirava atrás do carro, saltando para um abismo de onde não mais
poderiam sair.
Ainda restavam
muitos, entretanto, mas eu estava perto. Ignorando a dor da queda, postei ambas
as pistolas nas mãos, preparando-me para um embate de guerreiro, e corri. Corri
ao meu limite, evitei disparar sem pensar. As munições eram contadas, eu sabia,
teria de preservar para o momento em que tivesse de invadir a casa de Lilian.
Casa essa que, quando
percebi, já estava em minha frente.
***
Meus pais devoraram
a minha irmã até que nada restasse.
Logo após,
avançaram na direção do guarda-roupa, debateram-se contra as portas de madeira,
ferindo os braços e as cabeças mórbidas, lamuriando o pesar de suas fomes
intensas. Eu estava com medo, mas o que poderia fazer? Não deixaria meu
esconderijo por nada, nunca mesmo. Não seria devorada por meus próprios pais,
como acontecera à minha irmã. Ficaria ali, escondida, até que ele chegasse.
Ouvi batidas na
porta, ainda que o estrondo das pancadas no armário fosse muito maior. Então,
um disparo, como uma explosão. Conhecia o som dos tiros de filmes e seriados, a
realidade me assustou.
Depois disso,
gritos.
Meus pais zumbis
deixaram de me incomodar.
Havia uma nova
vítima agora.
***
—Lilian! —eu
gritava, olhando ao redor sem encontrar ninguém. —Lilian, onde você está?
Lilian!
Olhei a cozinha, a
sala, o quintal, tudo vazio. Nenhum sinal de destruição, muito menos da
existência de uma pessoa.
Então avistei os
pais de Lilian.
Sempre tive uma boa
relação com eles, sabem. São bons pais, ainda que não fossem os melhores. Não
tinham excelentes condições para oferecer à minha namorada, mas faziam o
possível para que ela tivesse o melhor durante sua vida, fosse nos estudos ou
mesmo no conforto de seu lar. Aceitaram-me de bom grado no início do namoro, e
também me apoiaram nos meus sonhos, nas minhas vontades, diferente da concepção
de sogro e sogra obtida pelo restante do país. Eram bons pais, tinha certeza
disso, e bons amigos para mim também. Mesmo durante as crises de nosso namoro,
eles sempre estiveram ali para nos apoiar, para dar conselhos, para oferecer
ajuda.
Senti um pequeno
desgaste em nossa relação quando ambos saltaram sobre mim, famintos, gritando
pela praga que os assolava.
Chorei, mas
preparei as pistolas.
Descarreguei-as.
***
Tiros, outra vez, e
então silêncio.
Nada de gritos,
nada dos gemidos angustiantes dos meus pais, nada de nada. Apenas silêncio, e
ele machucava mais do que o som. Senti o cheiro de sangue, de morte. Senti
fome.
Minha cabeça
parecia girar no lugar.
Abri as portas que
me escondiam.
—Thomas —tentei
falar, mas minha voz não saiu. Ou talvez tenha saído, mas soou muito diferente
do que imaginei.
Cambaleei para fora
de meu quarto, enroscando o pé na ruína do corpo de minha irmã, do que restara
dela após a fome de meus pais. Apoiei-me nas paredes, ouvi choro. Abandonei
aquele cômodo com uma estranha dor no peito, mais precisamente no coração.
Talvez ele deixasse de funcionar, mas eu não percebia mais nada.
—Thomas...
Ele estava lá,
chorando sobre os corpos sem vida dos meus pais, choramingando pela dor da
morte que ele trouxe. Ainda que, na verdade, não fosse ele o responsável pela
morte dos meus pais, mas sim o herói que os libertou daquela doença.
O herói que viera
para me salvar.
O meu herói.
—Thomas...
Ele apontou uma das
armas para mim, assustado. Súbito, deixou que ela caísse, sem forças para
continuar. Chorou, gritou, esperneou em sofrimento.
—Não, Lilian, não
pode ser!
—O que foi, Thomas?
Percebi que ele não
me escutava.
Só então entendi o
que estava acontecendo.
—Não pode ser,
Lilian, eu não quero acreditar nisso.
Ele se levantou,
caminhou até mim. Ergui meus braços, estudei-os. Estavam pútridos, como se em
decomposição.
—Thomas, eu te
amo...
Minha voz era nada
além de um gemido tortuoso, uma angústia cuspida por lábios ressecados e
cinzentos.
—Lilian, por quê?
Por que isso tinha de acontecer? Por que você?
Eu era um deles. Um
zumbi.
Minha fome me
controlava, e logo eu mataria Thomas.
—Me desculpe.
Ele não me
escutava.
—Eu não quero viver
num mundo sem você, Lilian.
Olhei para sua
perna, sangrava. Ele fora ferido no enfrentamento de meus pais. Já estava
infectado, provavelmente.
—Thomas.
—Lilian, eu te amo.
Me alcançou num
abraço apertado, senti o calor de seu corpo me esquentar por segundos.
—Eu também te amo,
Thomas.
Mas era um gemido,
e nada mais.
Eu senti vontade de
abraçá-lo, de gritar em seu ouvido o quanto o amava, o quanto senti saudades de
seu conforto, de seu corpo encostado no meu, de seu amor quente. Senti vontade
de muitas coisas.
Mas a fome era a
maior de todas.
—Eu também te amo,
Thomas.
Então o mordi, e o
calor de seu corpo desapareceu, selando nosso amor.
Ficaríamos juntos
para sempre.