Capítulo 4 - Eles estão por toda parte


Resolvo passar a noite no Ginásio, pois já está escurecendo. Por incrível que pareça, não encontrei nada de útil em minha vistoria.

Daniela usa dois bancos levantados lacrando a passagem pro corredor que leva aos vestiários. Ela me empresta dois colchonetes onde posso descansar com mais segurança, o que não faço há um bom tempo. Não trocamos muitas palavras, mesmo que ela tente saber mais sobre minha vida algumas vezes. Saber que talvez nossas vidas nunca mais voltem a ser como antes parece não abalá-la. O bom humor não a abandona. E bom humor demais é algo que me incomoda.

Nunca gostei de pessoas muito simpáticas. Isso pra mim é sinal de falsidade, ou de uma máscara, pra esconder a verdadeira personalidade que tentam camuflar. Sempre gostei de falar o que penso e fazer o que quero, sem me importar com a maneira que me olharão. Nunca fui de bancar o bom samaritano com quem não gosto. Exceto quando tenho algum interesse. Meu amigo Roger costumava dizer que eu era muito interesseiro e só pensava em mim, por isso ninguém me agüentava por muito tempo. Eu me divertia quando ele falava isso.



♦ ♦ ♦



Daniela me acorda cedo.

Ela parece muito animada pra deixar o Ginásio. Acho que se eu tivesse passado três semanas confinado em um mesmo lugar também estaria louco pra fugir. Pegamos a comida que resta, o que não passa de alguns pacotes de bolacha e umas seis barras de cereais, garrafas de água, algumas poucas roupas, e saímos.

Vou na frente, mesmo que ela insista em andar ao meu lado. Como essa garota me irrita. Assim que chegamos ao portão principal, olho por toda parte, procurando alguém. A área parece estar limpa. O sol ainda não brilha muito, pois não deve passar das seis e meia da manhã. Faz até um friozinho bem gostoso. Abro o portão com cuidado e sigo até o meio-fio. Olho pra direita e não vejo nada. Quando olho pra esquerda, vejo um grupo grande de indivíduos se locomovendo rápido. Parecem estar vindo em nossa direção.

- Daniela, entra no ônibus, agora!

A sigo enquanto ela sobe no veículo. Quando tento fechar a porta, ela parece travada. Esqueço que portas de ônibus não fecham assim. Como essa coisa funciona?

Daniela vem correndo de onde estava escondida e mexe debaixo do painel do motorista. A porta fecha, pra nossa sorte, a tempo de evitar que um dos zumbis entre. Ele bate na porta selvagemente, enquanto os outros vão se aglomerando em volta dele, querendo entrar. Meu Deus! E agora?

Quando os vidros da porta começam a trincar devido as pancadas desferidas pelos monstros, Daniela me grita no meio do corredor. A vejo em pé sobre os bancos, abrindo uma passagem no teto. Nisso eu teria pensado. Quando corro até a saída, ouço os vidros serem quebrados. Os grunhidos se tornam mais assustadores. Parece que, ao sinal de comida garantida, eles fazem um barulho diferente. Algo que talvez signifique, em sua língua, “hora do lanche”.

Só tenho tempo de subir no braço da poltrona e segurar na borda da passagem, lançando-me pra fora, assim que os zumbis invadem. Bato a portinhola logo abaixo e olho pra trás.

Onde está Daniela?

Demoro pra ouvir os gritos em meio ao barulho que os malditos fazem, tentando abrir a estreita passagem.

- Tiago, vem! Eles vão nos cercar!

Levanto num pulo e corro até a parte de trás do ônibus. Daniela está me esperando, com sua inseparável barra de ferro nas mãos.

- Rápido! – diz ela, começando a correr.

Eu entendo que os zumbis perceberam sua voz e já estão vindo. Mais do que depressa, caio num Landing desajeitado no asfalto e só tenho tempo de levantar e correr. Posso até sentir uma mão segurando minha mochila, mas soltando-a logo em seguida. Os urros e passos atrás de mim me dão mais força pra correr pela minha vida.

Daniela se encontra meia quadra a frente. A menina corre muito. Pelo menos não terei que esperá-la. Como se eu fosse. Mantenho o pique sem me desconcentrar.

- Daniela! Desça a próxima rua! – grito, sentindo-os se aproximar.

Ela vira a próxima esquina e desce. Sigo-a sem pensar em parar, mesmo que minhas pernas peçam por descanso. Sinto-os próximos. Fraquejo por um milésimo de segundo, o suficiente pra quase me transformar em comida de zumbi. Acho que não conseguirei.

- Daniela! Não para de correr! Daqui seis quadras tem uma loja de armas. Entra nela!

Assim que grito, ouço-a responder algo que não consigo entender, e faço o que não costumo fazer. Olho pra trás. Eles estão a poucos passos de mim.

Vocês não vão me pegar tão fácil, bando de vermes!

Na esquina seguinte, viro habilidosamente e subo um muro de três metros num pulo. Pode parecer meio irreal, mas eu treinei Le Parkour e sei que isso é possível. E mais importante: tem no mínimo uns quinze canibais atrás de mim, loucos pra me destroçar. Acho que eu escalaria trezentos metros pra evitar que isso aconteça.

Pude notar que o portão da casa estava entreaberto, então descer, mesmo do lado de dentro, está fora de cogitação. Comprovo isso quando os vejo invadir o terreno. Estou cercado, me equilibrando sobre um muro, com mortos-vivos logo abaixo de mim, esperando um deslize meu pra se alimentarem. Eles até escalariam se fosse mais baixo, mas não possuem habilidade pra tanto. Respiro fundo e vou devagar até o muro da casa vizinha.

Por sorte, o telhado está próximo, o que me possibilita pular sobre ele. Agora sim posso dizer que estou seguro. Mas não pretendo ficar muito tempo aqui. Será que Daniela conseguiu encontrar a loja de armas? Será que ela conseguiu se manter viva?

Olho pros lados e chego a conclusão de que não poderei descer desse telhado tão cedo. O negócio vai ser ir por cima. Cautelosamente, vou caminhando sobre as telhas em direção ao meio do quarteirão. Se eu conseguir chegar do outro lado, pego a rua de cima e vou atrás de Daniela. À medida que avanço, o barulho emitido pelos monstros vai se tornando mais distante, me aliviando um pouco. Chego à última casa e vejo que não há ninguém na rua. Escalo pelo muro e desço. Pego meu squeeze e dou uma golada generosa. Essa corrida me deu uma sede. Mas talvez a garganta seca seja pelo fato de, mais uma vez, ter visto a morte de perto.

Vou caminhando sorrateiro pela calçada até a esquina, e olho pelo canto do muro. Os zumbis se dispersaram pela rua. Se eu passar, eles vão me ver e eu vou ter que correr mais. Não aguento mais correr. Decido entrar na casa logo atrás de mim, e descansar um pouco. A porta da entrada está entreaberta. A empurro devagar e entro, já me preparando pra correr de novo caso algum infeliz apareça.

Andando pela sala bagunçada, constato que não há nenhum monstro, caso contrário já teria aparecido. Caio no sofá e suspiro fundo.

Até quando terei que me esconder e fugir dessa maneira? Será que algum dia terei que procurar trabalho mais uma vez? Se chegarei em casa e atacarei a geladeira? Se conversarei com meus amigos pela Internet? Se irei ao cinema? E os churrascos de família aos fins de semana? Como eu odiava aquilo. Mas hoje é uma das coisas que sinto falta. Eu era feliz e não sabia.

Olhando pro lado, posso ver a cozinha, com as cadeiras caídas no chão e a mesa revirada. No fogão, há duas panelas. A comida deve ter estragado, com certeza. Logo abaixo, vejo um botijão de gás.

Tenho uma idéia!



♦ ♦ ♦



Saio da casa com o botijão nos braços. Não sei se está vazio ou cheio, mas tomo o máximo de cuidado. Vou até a esquina e vejo que eles continuam perto do muro que subi pra fugir. Coloco-o no chão e, mirando-o pra descida, o empurro, correndo pra dentro da casa. Da fresta da porta posso vê-los correndo atrás do botijão, que desce rolando rua abaixo, fazendo um barulho nada discreto. Pode não ter sido o plano mais original do mundo, mas funcionou. Passo correndo pra outra esquina e, certificando-me de que não me viram, pois alcançaram o botijão e estão examinando-o, me ponho a correr até a loja de armas.



♦ ♦ ♦



Levo uns cinco minutos até chegar lá. Fica próxima á praça central e á sorveteria. Não é uma cidade muito grande. Pra minha sorte. Se fugir de poucos é cansativo, imagine como deve estar a Capital. A porta da frente está fechada. Escalo a parede lateral, onde há uma grade resistente, e chego até o telhado. No centro, há umas telhas soltas. Terá sido Daniela quem as soltou? Aproximo-me e olho pelo buraco. Escuridão. É o forro de madeira da loja. Pulo com cautela num som abafado e, abaixado, vou até uma parte iluminada no fundo. Um alçapão que leva à loja.

- Daniela? – chamo, baixo. Nada.

Com precisão, pulo. Meus pés doem quando caio, pois é uma boa altura até o forro. Assim que me levanto, vejo Daniela encostada na porta da entrada, envolta pelas sombras. Sua feição está mudada. Ela me olha com um olhar diferente, com raiva. Ela está apontando um revólver pra mim.

- Eu vou te matar! – diz ela, tremendo com a arma na mão.

- O quê você vai fazer? – grito, sem entender.

 
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11 mordidas:

Thaís V. Manfrini disse...

O quê ela vai fazer??

28 de agosto de 2008 às 17:13
Tayná Tavares disse...

Oh meu Deus! Oh meu Deus! E agora!!!

17 de fevereiro de 2009 às 04:20
ErickTavarez disse...

Menina doida!
Massa!

Me perdi numa parte alí, mas beleza.

12 de julho de 2009 às 16:47
Klarck disse...

Curioso, que ela vai fazer? '-'

20 de março de 2010 às 14:49
Anônimo disse...

Comentando só pra deixar meus parabéns, nunca tive interesse em coisas totalmente literárias e essa obra tem me feito despertar isso.

Muito obrigado. :)

28 de abril de 2010 às 02:49
Anônimo disse...

Nada como ler uma boa história comendo bolacha.

12 de maio de 2010 às 01:02
Anônimo disse...

Vish maria e agora? O.o!

30 de agosto de 2010 às 10:07
Unknown disse...

Fudeu!? O.O'

9 de outubro de 2010 às 18:54
Anônimo disse...

WTFISTBBQ??
Acho que ela vai declarar algo sobre sentir falta dele, ou algo do tipo.

Epic Win pro botijão. Achei que ele ia botar fogo na galera, mas bem...

Cidadezinha pequena... É... desconfio que seja interior de São Paulo?

23 de outubro de 2010 às 16:40
૮α૨ѳℓ disse...

Achei que ele ia botar fogo na galera, mas bem... +1

Essa Daniela não bate muito bem, uahsuahsuahs.
Indo para o próximo...

23 de junho de 2011 às 03:10
Tiago Toy disse...

Mizzz, é interior de São Paulo sim.


Sejam bem-vindos novos infectados, e aos antigos, espero que continuem sobrevivendo.

Grande abraço!

6 de julho de 2012 às 23:36

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