Capítulo 11 - Pesadelo que não tem fim


Tento continuar indiferente, mas ver minha foto como procurado na TV foi um choque. Noto que as coisas vão esquentar quando um dos clientes olha de lado para o dono do estabelecimento do outro lado do balcão e faz um sinal discreto, mas não o bastante para que eu não perceba.

Abaixo a cabeça e olho sutilmente ao redor. Tensão toma conta do local enquanto sinto meu coração acelerar. Vejo-os levantando e devagar vindo em minha direção, enquanto dois bloqueiam a saída. Num repente, me jogo pra trás e ponho-me a correr para os fundos, trancando-me no banheiro. Pancadas fazem a porta tremer, e me pergunto quanto tempo ela resistirá.

Não há saída, apenas a pequena janela, por onde nem meu braço passa direito. Olho ao redor. O que farei?

Debruço-me sobre a pia e olho no espelho. Uma veia pulsa em minha testa, enquanto o suor desliza pelo meu rosto. Cerro os dentes e num impulso, dou uma forte cotovelada contra o vidro, fazendo os estilhaços espalharem-se pelo chão. Pego um grande pedaço que ficou sobre a pia, enrolo papel higiênico em minha mão e seguro firme. É a melhor arma que posso improvisar.

Rápido, abro a porta do banheiro e vejo-os investir, mas param quando notam o pedaço de vidro em meu poder.

- Se alguém chegar perto eu mato! – ameaço.

Não sei se teria mesmo coragem de matar algum deles. Espero não descobrir. Lentamente, vou em direção à saída, enquanto eles tentam me cercar por todos os lados. Vejo que ainda há um homem tentando bloquear a saída. Sem dar-lhes tempo pra pensar, viro uma mesa contra eles e pico a mula. O que está na porta ainda tenta me impedir, mas quando vê o vidro indo em sua direção, pula para o lado. Sem olhar pra trás, corro ladeira abaixo e viro a esquina. Percorro duas quadras e quando vejo que ganhei vantagem, escondo-me em densos arbustos de um muro. Ouço-os se aproximando, gritando ofegantes, quando passam por mim, sem me notar.

Aguardo poucos segundos para sair do esconderijo e voltar por onde vim.



♦ ♦ ♦



Chegando ao hotel, noto que a senhora da recepção me olha de um modo suspeito. Na TV do outro lado do saguão está passando o noticiário. Com certeza ela viu.

- Boa noite. – cumprimento, tentando parecer natural.

Ela apenas emite um som abafado. É melhor eu ser rápido. Chegando à escada, corro de três em três degraus, indo direto pro quarto, batendo a porta atrás de mim.

- Já começou, não é? – pergunta Daniela, sentada no sofá, em frente a TV.

- Sim.

- Cara, eles dizimaram ainda mais nossa cidade! – grita Ricardo, ajoelhado sobre a cama.

- Como assim?

- O exército recebeu ordens de destruir todo e qualquer foco do vírus que foi transmitido pela água no interior. – explica Daniela, com um tom sarcástico.

- Vírus na água? – não entendo nada.

- Segundo os noticiários, um vírus desconhecido se espalhou pela água nas cidades do interior e contaminou a população. Como a doença era contagiosa, ninguém sobreviveu. – Daniela faz uma pausa, olhando para Ricardo, e continuando logo em seguida. – Disseram também que o vírus fazia as pessoas se tornarem violentas, atacando umas as outras. Sem escolha, pelo fato da doença ser irreversível, o exército recebeu ordens de manter as cidades fechadas, onde todos se mataram.

- Cara... – engasgo. – Mas que porra tá acontecendo?

- O exército anunciou que o vírus foi contido nas cidades e não há mais risco de contágio. Ninguém sobreviveu, exceto três foragidos que atacaram e mataram alguns soldados e escaparam pra Capital.

- Ou seja, os três patetas aqui! – sinto o sangue ferver.

- Estão dizendo que somos perigosos pois estamos infectados e podemos passar o contágio adiante. Nos querem vivos pra estudos e oferecem recompensa. – finaliza Daniela.

- Óbvio que tudo isso não passa de mentira! – berro. – Só não entendo porque esconderam a verdade. Dra. Abigail nos contou que tudo começou na UNESP.

- E quem garante que ela nos disse a verdade? – Daniela lança a dúvida.

Pronto! Já não bastasse ter que fugir de monstros assassinos, agora temos que fugir da população de São Paulo. Quando esse pesadelo vai acabar? Sinto vontade de explodir.

- Bom, pelo jeito muita gente assiste o noticiário por aqui. – tento me acalmar. – A dona do hotel me olhou estranho quando cheguei, e a TV estava no jornal. Vamos dar o fora daqui antes que seja tarde.

- Só estávamos esperando você chegar pra dar no pé. – fala Ricardo, pulando da cama. Enquanto Daniela vai pegar a chave do carro sobre a TV, abro a porta e ouço vozes vindo da escada.

- Eles estão no quarto doze. – diz uma voz feminina.

- Peço que fique aqui, senhora. – um homem fala, e logo em seguida, ouço passos subindo.

- Teremos que encontrar outra saída. – digo, enquanto tranco a porta.

Corro até a janela e a abro. Não é tão alto até o chão. Pronto pra explicar o plano pros dois, ouço pancadas contra a porta.

- Droga! – resmungo baixo.

Após cinco investidas, os homens entram no cômodo. O primeiro vê a janela aberta e corre até ela, olhando pra fora.

- Eles fugiram! – grita ele. – Rápido!

E saem do quarto, deixando a porta aberta.

Quando ouço as vozes na rua ordenando que nos encontrem, saio de dentro do guarda-roupa devagar, certificando-me de que não há mais perigo. Logo em seguida, Daniela se arrasta de debaixo da cama, ajeitando a roupa. Ricardo vem do banheiro, saindo detrás da cortina.

Pego a lista telefônica e percorro o mapa com os olhos. Depois, folheio as páginas amarelas e pego o telefone, discando.

- Alô! – falo baixo e ofegante. – Vocês estão procurando os três foragidos do incidente no interior?... Eles estão escondidos no fundo da minha casa.

Daniela me olha intrigada.

- Sim, anota o endereço. – passo o endereço que marco com o indicador na lista. – Venham rápido!

E desligo. Corro até a janela e olho pra baixo, escondido. Menos de um minuto depois, ouço o rádio da viatura estacionada apitar e o policial que está montando guarda em frente ao hotel correr até ele. Logo em seguida, grita por seus parceiros, dizendo que nos encontraram a algumas quadras. Contornando a rua, somem na esquina adiante.

- Pronto! É nossa deixa.

Saímos pelo corredor e andamos nas pontas dos pés. A única saída é pelo saguão. Próximos da escada, vejo nossa delatora subindo. Faço sinal para fazerem silêncio e nos escondemos em outro corredor. Ela deve ter vindo buscar a chave, pois passa reto e vai direto ao quarto em que estávamos. Não há mais tempo. Descemos os degraus quase correndo e vamos direto pro carro, estacionado do outro lado da rua. Eles vão ver que foram enganados e voltarão bem rápido. Em questão de segundos, já dentro do carro, Daniela dá a partida e sai cantando pneu.



♦ ♦ ♦



Estacionados sob uma árvore no Parque Ibirapuera, tentamos raciocinar pra tentar descobrir o que de fato está acontecendo.

- Vocês acham que a Doutora mentiu sobre o real motivo do incidente? – pergunto.

- Se mentiu, é porque ela tem culpa no cartório. – Daniela mantém as mãos no volante enquanto fala. – E se o vírus não foi transmitido por cachorro nenhum?

- Faz sentido. – Ricardo entra na conversa, sentado no banco de trás. – Além daquele leão, não vi nenhum outro animal agindo como as pessoas infectadas. Pelo contrário, os poucos cães e gatos que vi estavam mortos.

- Sim. E imaginem o seguinte. – começa Daniela. – Um humano passa o vírus pra um cachorro. O cachorro ataca um gato, que infecta um rato. O rato leva a epidemia pros esgotos, e todos os ratos são infectados. O sistema de esgoto da região é bem mais amplo do que somente as cidades que foram destruídas. O vírus já teria alcançado São Paulo. Isso sem mencionar as aves e insetos. Se animais ficassem como os humanos, nós não estaríamos vivos agora.

- Pois é. – concorda Ricardo. – Isso significa que aquele leão não estava infectado, só agiu por instinto.

- Então, se isso tudo não começou com um cão... – indago. -... Como começou?

Ninguém no carro sabe responder. Aceitando o fato de que teremos que dormir no carro, recostamos os bancos e mantemo-nos em silêncio. Ouço o estômago de Ricardo roncar. Deve estar faminto, coitado. Daniela resmunga algo que não consigo entender por alguns minutos, até que consigo pegar no sono.



♦ ♦ ♦



Correndo pelas ruas, ouço gritos ao longe. Parece que a cidade foi alvo de um ataque terrorista. Carros batidos, sangue na entrada das casas, cadáveres pelo caminho. A imagem faz-me recordar os filmes de terror que tanto sou fã. É bem diferente quando se está dentro de um.

Virando uma esquina, bato de frente com Júnior, um dos meus poucos amigos. Não sou muito de amizades.

- Cara, você tá bem? – pergunta ele, me pegando pelo braço.

- Estou. – e puxo meu braço. Odeio quando me pegam. –O que está acontecendo?

- Não sei. Tá todo mundo matando todo mundo. Aconteceu muito rápido. Só tive tempo de correr e me esconder. Vamos sair daqui! – e pega meu braço novamente.

- Pra onde? – e torno a puxar meu braço. – Eu vou pra casa ver se meus pais estão bem.

- Você é louco? – grita ele, olhando afobado para os lados, verificando se não há ninguém por perto. – Não dá pra voltar pra lá! Todo mundo enlouqueceu! Vamos!

- Não! – grito, já perdendo a calma. – Minha mãe talvez esteja bem. Eu preciso...

- Então vai, Tiago! – grita ele, com desprezo. – Vai e se mata! Eu vou é sair daqui!

Que idiota! Como ele se atreve a falar assim comigo? Será que ele não pensa na família dele também? Ou talvez estejam mortos uma hora dessas.

Preparo-me pra correr, quando ouço gritos. Olho pra trás e vejo meu suposto amigo ser atacado por duas garotas. Uma tira-lhe um pedaço de carne do pescoço com apenas uma mordida, enquanto a outra arrebenta os dedos de sua mão direita com os dentes.

Porra! O que é isso?

Devo ter falado o palavrão alto, pois atraio a atenção das duas loucas, que largam Júnior agonizando no asfalto e vêm em minha direção, gritando feito animais. Engulo seco e começo a correr. À medida que vou avançando, mais estranhos vão surgindo de toda parte e passam a me perseguir. O som que emitem faz minhas pernas bambearem, mas mantenho-me firme na corrida. Por que querem me matar? O que há de errado com essas pessoas?

Viro uma quadra e pulo por cima de um carro batido no poste; não há tempo para desviar. Passo em frente ao Ginásio de Esportes e até penso em entrar e me esconder, mas quando vejo uma dezena deles sair pelo portão principal descarto a idéia. Poderia subir nas árvores logo adiante, mas é impossível chegar lá. Há muitas pessoas vagando pelo gramado e, quando me vêem, se juntam aos meus perseguidores, que não são poucos.

O fôlego começa a me faltar. Já estou correndo há uns bons minutos. Se eu não parar pra respirar vou acabar passando mal e caindo. Sinto-os próximos e viro a próxima esquina derrapando, fazendo dois deles caírem quase sobre mim. Recomponho-me rápido e corro ladeira abaixo. A descida é íngreme o bastante pra me fazer perder o controle e tropeçar. Consigo dar um rolamento e me colocar de pé novamente, continuando a correr. O Parkour me foi útil, afinal de contas. Não devia ter parado de treinar, mas pelo visto não estou tão enferrujado quanto pensei. Na hora do aperto...

Chegando à ponte no fim da ladeira, olho adiante, mantendo a corrida, e percebo que não conseguirei subir a próxima rua rápido o suficiente pra fugir deles. Fazendo uma curva fechada, pulo, bato o pé na grade na beira da ponte, e me jogo. A queda é bem alta, mas a água do riacho amortece um pouco. Caio de barriga, quase batendo a cabeça numa pedra bem próxima. Teria sido fatal.

Olho pra cima e os vejo urrando, apoiados na grade. Não parece que vão bancar os pára-quedistas sem pára-quedas, como fiz há pouco. Levanto-me rápido e ponho-me a correr pela margem, enchendo meus tênis de barro. Os berros vão ficando para trás, cada vez mais baixos.

Pelo caminho, vou escutando gritos ao longe. Gritos de socorro, de dor. Não serei eu quem os ajudará. No momento, só quero saber da minha família. Se Deus quiser estarão bem. Ele há de querer. Minha mãe deve ter trancado a porta a tempo de se salvar. Trancou-se com minha vó e minha gatinha, Myuki. E meu pai? Será que chegou de viagem a tempo de protegê-las? Ou ainda estará viajando? Nunca sei quando ele está em casa ou fora. Espero que estejam todos bem mesmo. São tudo o que eu tenho.

Numa curva, desvio de alguns galhos baixos e deparo-me com um carro atolado dentro do riacho. Há uma mulher dentro dele, debruçada sobre o volante. A porta encontra-se aberta. Aproximo-me devagar. Há sangue no pára-brisa.

- Oi? – grito. – Olá!

Ela não se move. Estará morta?

Próximo, toco-a no braço fino e machucado. Há muito sangue em sua roupa. Tiro o cabelo de seu rosto para ver se ainda está viva, quando ela grita descontrolada e se lança em minha direção. Caio sentado na água enquanto ela se debate, presa pelo cinto de segurança. Há um ferimento bem feio em seu rosto. Parece uma mordida que lhe tirou boa parte da bochecha esquerda e metade do lábio superior, deixando sua gengiva e dentes ensangüentados à mostra. Pelo olhar de ódio, parece estar possuída. É melhor eu me apressar. Cintos de segurança são resistentes, mas não são de aço. Levanto-me e continuo o percurso.

Dez minutos depois chego aos limites do meu bairro. Estranhos e alguns dos vizinhos vagam pela praça principal, sem rumo, estranhando uns aos outros. Por sorte, moro na primeira casa da quadra. É só atravessar a rua e estarei à salvo. Respiro fundo e vou sorrateiro, meio abaixado, até o outro lado. Consigo passar despercebido, graças a Deus. Constato que o portão está fechado e meu coração se enche de esperança. Eles conseguiram trancar a casa a tempo. Sem muita dificuldade, escalo o muro e logo em seguida me encontro no quintal. Silêncio.

- Mãe. – chamo-a, num sussurro, aproximando-me da porta da cozinha. – Sou eu, o Tiago!

Dou dois toques na porta de vidro e aguardo. Nada.

Vasculho meu bolso e pego minha chave. Não sei como não a perdi pelo caminho. Encaixo-a na tranca e giro a maçaneta devagar, sem fazer barulho algum. Abro a porta e não vejo nem ouço nada. Com passos silenciosos, vou até o corredor e o atravesso, chegando à sala. Ninguém. Está tudo em seu lugar, sem sinal de ataque. Volto e vou até os quartos. Tudo escuro. Será que fugiram?

Vou até meu quarto e ligo o computador, meu vício. Agora, é uma necessidade. Por algum motivo, a Internet não conecta. O reinicio pra ver se resolve. Droga! Não conecta de jeito nenhum. Puxo a tomada e caio na cama. Fecho os olhos por um momento, quando ouço um barulho vindo do quarto dos meus pais. Levanto-me num pulo e vou até a porta. Com cuidado, desprendo a barra que usava pra fazer exercícios do alto e seguro-a firme. Com passos curtos, vou até o quarto no fim do corredor.

Acendo a luz e ergo a barra de ferro.



♦ ♦ ♦



- Tiago! Acorda!

É Daniela me chamando. Bocejo por longos segundos enquanto alongo alguns membros. Dormir mais uma noite nesse carro vai acabar com minha coluna. Minha cabeça dói bastante, por fome talvez. Olho pelo retrovisor e vejo Ricardo no banco de trás, com os olhos inchados.

- Que fome! – resmunga ele. – Não como nada desde... Desde quando?

- Desde ontem, quando chegamos aqui. – lembra Daniela. – Já faz mais de doze horas que não comemos nada.

- Eu poderia até me sentir em vantagem, mas não consigo nem lembrar o gosto da comida do lugar onde nos vi no noticiário. – conto. – Não tive tempo pra comer, mas pelo menos não paguei pelo pedido.

Ricardo ri, enquanto Daniela me olha, com uma expressão um tanto triste. Sei o que ela está pensando. Quando nossas vidas serão normais novamente?

Vamos até um restaurante, onde Ricardo entra sozinho e volta com três marmitas, duas latas de refrigerante e uma garrafa de suco. Evito beber refrigerante ao máximo. Uma mania saudável, posso dizer. Estacionamos em uma rua deserta, salvo alguns carros que passam hora e outra. Almoçamos em silêncio. A comida desce suave. Pela primeira vez na vida, eu sinto o gosto do que estou comendo. Antes eu engolia com pressa. Pressa pra quê? Não me lembro de nada que valha a pena. Nunca um arroz e feijão foram tão gostosos. Os olhos de Ricardo brilham enquanto ele devora a coxa de frango com as mãos. Come com uma vontade que dá gosto. Daniela mastiga devagar, olhando pra lugar nenhum, pensativa. Come com calma, mas come tudo.



♦ ♦ ♦



Na semana que se seque, tratamos de não nos fixar em lugar algum. Pagamos um quarto por noite e no dia seguinte vamos embora. Nunca dormimos no mesmo lugar duas noites seguidas. Ricardo é encarregado de buscar comida, pois é mais difícil ficarem de olho em um moleque. Ainda mais um japonês. Todos são iguais.

Passo a andar de boné e óculos escuros, cobrindo boa parte do rosto. Ricardo faz um moicano baixo, bem diferente do cabelo tigela liso e comprido que tinha. Daniela usa uma tesoura de costura e corta ela mesma os cabelos, bem curto e com uma franja longa, mudando bastante a aparência. Até me assusto quando a vejo. Vendo-a sorrir, com a franja caindo em seu rosto, retribuo.

Sem muito esforço, conhecemos um cara que nos fornece RGs falsos, por um preço até camarada. Ganhamos novos nomes. Felipe, Fernanda e Rainer - eu. Os documentos ficam perfeitos.

Em praticamente oito de dez quadras há um cartaz com nossas fotos, tiradas na base. O “Procura-se Vivos” me assusta no início, mas chego a me acostumar e nem ligo mais quando os vejo colados nos muros e postes. Apenas evito ficar próximo de algum deles. Todo cuidado é pouco.

Nos noticiários, falam sobre nós todas as noites, pedindo pra população tomar cuidado caso nos encontre, pois somos perigosos. Há dois caminhões em cada saída da cidade revistando quem entra e quem sai. Não é permitido entrar nas cidades que foram atacadas por enquanto, mas em breve as restaurarão e os habitantes que estavam fora, viajando ou trabalhando, são obrigados a voltar para onde estavam. Caso não haja essa possibilidade, o governo providenciará uma moradia provisória até que tudo seja resolvido e possam regressar. Mas o foco maior é nos encontrar. Por que nos querem tanto? Não dever ser só porque ferimos alguns soldados em Ribeirão Preto. Acredito que o motivo tenha começado enquanto estávamos na base. Mas nós nem conseguimos pegar a amostra do vírus. O que há de tão urgente em nos encontrar?

Certa noite, Daniela tem outro ataque. O mesmo que a fez cuspir sangue no prédio que nos escondemos. Dessa vez é mais forte, e num certo momento penso que é seu fim. Mas ela acorda no dia seguinte um tanto melhor. As veias voltaram ao normal, assim como seus olhos. Dá medo quando acontece. Será o vírus se manifestando de outra maneira? Não pode ser, pois pelo que me lembro ela não foi mordida nem ferida pelos infectados.

Ricardo sofre o mesmo ataque duas noites depois. Com ele não é tão forte quanto fora com Daniela, mas ainda assim é preocupante. Nunca vi uma doença que fizesse os olhos revirarem, ou se tornarem brancos, não consigo identificar. Muito menos uma que desse a impressão de que alguma coisa deslizasse pelas veias. É medonho presenciar isso. Em determinado momento, imagino-me sozinho, sem os dois ao meu lado. E se morrerem? Não posso me apegar. Nunca fui de me apegar a ninguém, porque seria agora?



♦ ♦ ♦



Numa tarde quente de domingo, Daniela e eu estamos vendo TV em um quarto de uma pensão, em um momento raro de tranqüilidade. Procuro algum emprego no jornal. O dinheiro que temos é o suficiente para vivermos bem nas próximas semanas, mas não é eterno. Talvez eu consiga algo que me mantenha escondido o dia todo, como em uma fábrica, ou talvez algum emprego noturno. Seria perfeito!

Enquanto Daniela assiste a um jogo de Handebol num canal de esportes, com um olhar sonhador, talvez relembrando quando jogava, Ricardo aparece batendo a porta.

- Onde você estava? – pergunto. Ele saíra há uma hora e meia e não avisou pra onde ia.

- Fui à Lan House, e consegui conversar com meu amigo, aquele com quem conversei quando os ataques começaram em nossa cidade.

- Cadê ele? – pergunto, levantando-me. Confiar nas pessoas não é algo muito fácil hoje em dia.

- Conversamos por MSN. – e continua, extasiado. – Eu contei pra ele toda a verdade e ele disse que vai nos ajudar a sair de São Paulo.

- Como? – Daniela se desconcentra do jogo.

- Ele disse que acredita na gente.Ele tem um helicóptero que pode nos levar pra longe daqui, mas teremos que nos virar depois.

Daniela e eu nos entreolhamos. Confiamos?

Decidimos ir conhecer o indivíduo. Talvez seja uma boa. Não podemos fugir a vida toda. Com o endereço anotado em um pedaço de papel, Ricardo vai pulando no banco de trás. Parece realmente uma criança. Como a cabeça dele deve ter mudado com tudo isso? Apenas dezesseis anos e já presenciou tanto terror. Estranhamente, isso não parece afetá-lo. Pelo contrário, está sempre disposto a brincar, contar piadas, rir, embora momentos assim tenham se tornado raros em nossas vidas.



♦ ♦ ♦



O lugar não é longe, apenas complicado de encontrar, devido às ruas que mais parecem um labirinto. Trata-se de um bairro nobre, com ruas estreitas e grandes árvores decorando as fachadas das casas. Nenhum simples dejeto no chão, todos os jardins bem cuidados, gramados aparados. Impecável. Já vim algumas vezes a São Paulo, mas não conhecia esse lado. Meu foco era a Avenida Paulista. Hoje meu foco é viver sob constante fuga.

Daniela parece receosa, pois demora pra descer do carro, olhando fixamente a casa. É o endereço certo. Agora é só bater e conhecer nosso possível salvador. Ricardo vai à frente, correndo. Não há muro em volta da residência, apenas um vasto jardim bem cuidado, decorado com algumas esferas de concreto e luminárias nas árvores baixas. A casa é toda de tijolo à vista, com janelas brancas, assim como a grande porta principal. Ricardo parece estar prestes a ganhar um presente, quando chega correndo na varanda, e toca a campainha. Olho pra Daniela, que ainda está perto do carro. Vai ser mesmo difícil pra ela se adaptar de novo à vida normal.

Quando me viro pra frente, só tenho tempo de ver alguns homens vestidos de preto saindo de trás da casa. Ricardo não os notou.

- Ricardo! – grito.

Ele olha pra mim, surpreso, e nem tem reação quando um homem alto abre a porta e o agarra pela cintura. Ele tenta se soltar, mas é em vão; o adulto é muito mais forte.

Por um momento não sei o que fazer, quando ouço Daniela me chamando. Recuo rápido, olhando Ricardo se debatendo em busca de liberdade. Não posso fazer nada contra todos eles. Quando entro no carro, nem tenho tempo de fechar a porta, pois Dani sai cantando pneu. deixamos dois deles, que correram em nossa direção, comendo poeira.

- Eu sabia! – grita ela, enquanto faz as curvas sinuosas do bairro em alta velocidade. – Ninguém ajuda ninguém a troco de nada! Ainda mais a gente!

- Putz... – nem consigo dar ordem às palavras. – E o Ricardo, Dani? A gente tem que buscar ele!

- Como? Você viu o tamanho daqueles caras lá atrás! Se a gente ficasse, teria ido pro saco também! – por um momento, percebo uma lágrima deslizando pela sua face corada. – A gente não podia fazer nada!

A tensão se encarrega de manter-nos calados enquanto Daniela guia o veículo com agilidade. Escondemos-nos em um bosque próximo, esperando algum carro que eventualmente esteja nos perseguindo, mas esse não vem.

- Vai ser difícil resgatar o Rick, Tiago. – Daniela quebra o silêncio de minutos. – E você sabe disso.

- O que a gente pode fazer? – pergunto, encostado no banco, olhando pro alto.

- A questão é: o que a gente não pode fazer! - e me olha esperando que eu me manifeste.

Encaro-a por um instante.

- Peraí! – pauso. – A gente tá falando sobre... Abandonar ele?

- Tiago! – ela suspira. – Eu tenho quase certeza que não vai adiantar nos arriscarmos por ele. E nem sequer sabemos pra onde o levaram.

Eu saio do carro, batendo a porta. Vago pela grama alta. Daniela sai em seguida, debruçando-se sob o capô.

- Não. Não! A gente não pode abandonar ele assim. Eu não abandonaria você! – falo enquanto ando com as mãos na cabeça.

- Não? – pergunta ela, me olhando desconfiada. – Lembra quando nos conhecemos? Lembra que você ia me deixar pra trás?

- Dani! Eu nem te conhecia! – bato a mão no carro. – Esse não é o caso. Escapamos vivos do incidente juntos, nos ajudamos. Não estou falando sobre amizade. Falo sobre consideração. Nunca me apeguei a amigo nenhum e nunca o farei. Mas tenho consideração pelas pessoas. Quando posso ajudar, o faço. E o Ricardo precisa da minha ajuda. Se você não vier junto, pode pegar esse carro e nos despedimos aqui mesmo.

Ela me olha fundo nos olhos por longos segundos. Parece buscar algo. Sinto-me um tanto incomodado.

- Volta pro carro. – diz ela, entrando. Entro logo em seguida para vê-la me encarando novamente. – E então? O que você propõe?



♦ ♦ ♦



No dia seguinte, acordo antes dela. Na verdade, não consegui pregar os olhos a noite inteira. Fico imaginando... O que estarão fazendo com Ricardo? Onde ele estará? Será que está bem?

Daniela desperta com um grande bocejo, e me olha.

- Bom dia. – respondo com um sinal, e ela começa. – Pronto?



♦ ♦ ♦



Vamos até uma padaria, tomamos o café da manhã tão rápido quanto possível, e saímos logo em seguida, indo até um orelhão. Daniela segue o plano e disca o número da polícia. Fingindo ser uma estudante que mora sozinha em uma kitnet, diz que Tiago e Daniela estão hospedados no quarto ao lado. Pra ser mais convincente, exige a recompensa.

Menos de dez minutos depois estamos escondidos em um beco, assistindo a ação rápida dos mesmos homens que pegaram Ricardo na noite anterior. Chegam em um furgão preto onde podemos ler L.A.Q.U.A.R.T.Z. na lateral em letras grandes. Há algo escrito sob a tal palavra, mas não consigo ler. Usam ternos pretos e óculos escuros. Invadem o pequeno prédio que Daniela indicou pelo telefone, onde permanecem por exatos quinze minutos. Quando saem, um deles conversa em um celular, parecendo bem irritado. Dando uma boa olhada pela rua, caminha por alguns metros pela calçada, olha fixamente para um ponto qualquer, dá meia volta e entra no furgão. Quando os vemos sumir pela esquina, corremos até o carro no fim da quadra e Daniela acelera o máximo permitido.

Perdemos o veículo por um momento, mas o encontramos logo em seguida. Mantemos uma distância razoável para não levantar suspeitas e os seguimos. Passando pelo centro da cidade, entramos por uma via movimentada. Daniela sofre pra não perdê-los de vista, até que entram em uma pequena estrada. Por sorte, há um número considerável de carros transitando ali, ajudando-nos a passar despercebidos. Um bom tempo depois estacionamos atrás de uma cerca de madeira, com cartazes de eventos pendurados, em sua grande maioria já gastos pelo tempo.

A construção em nossa frente exibe um grande letreiro.



LAQUARTZ
Laboratório de Quântica Aplicada
Rosabela Tzao



- Pronto! – diz Daniela, jogando a franja de lado. – E agora? Como entramos aí?

Olho-a e percebo aquele mesmo jeito debochado de quando a conheci. Mas, dessa vez, a situação é bem diferente.

- Não sei o que fazer agora. Acho que não há nada pra fazer no momento. Já sabemos onde o Rick está. Agora voltamos e bolamos algo com calma.

- Você não desiste mesmo, não é, Tia... – ela se cala.

Percebo o olhar incrédulo de Daniela. Viro-me e acompanho-a na surpresa. Dra. Abigail sai do complexo dirigindo um Mercedes prata. O portão se fecha automaticamente assim que ela passa por nós, sem nos notar. Apesar dos óculos escuros, é impossível não reconhecê-la.

- Ora, ora. – Daniela liga o carro. – Finalmente vejo a tal luz no fim do túnel.

Sorrindo maliciosa, Dani guia o carro mais cautelosamente do que quando seguíamos o furgão, enquanto eu anoto a placa do carro, caso venhamos a perdê-lo. Ela segue a estrada por onde viemos, mas vira em um caminho quase oculto pelas árvores. Onde estará indo?

Daniela nem pisca. Parece um robô programado para seguir aquele carro. Faço alguns comentários, mas ela sequer responde. Chegamos a um ponto onde não se vê carro algum, exceto os nossos. Num arranque, Daniela ultrapassa o Mercedes e o fecha, saindo do carro logo em seguida, determinada a tirar tudo a limpo.

- Lembra de mim, doutora? – diz ela, parada em frente ao carro. Não parece nada amigável.

- Como poderia me esquecer de você, Daniela? – responde a Doutora, sem nem sair do carro. Deve estar com medo, mesmo que não aparente emita qualquer reação. – E você, Tiago? Como vai?

- Hã? – levo um pequeno choque à menção de meu nome. – Continuo vivo, que é o que importa.

- Claro que isso importa, querido. - ela sorri.

Saio do carro e me debruço sobre a porta do carona. Daniela se mantém firme, ameaçadora.

- Eu quero saber o que você fez comigo! – grita Daniela. – Depois que saímos daquela maldita base, venho me sentindo mal, como se vermes andassem dentro de mim. E essas dores de cabeça malditas que não passam nunca. Esses sintomas estranhos, como se eu estivesse... Possuída! O que você fez comigo, piranha?

Vejo os punhos de Daniela se fecharem. Ou a velha coopera ou ela não vai sair bem dessa.

- Onde está Ricardo? – pergunto alto, mas mais controlado do que minha colega. – O quê fizeram com ele?

- Quantas perguntas! – Abigail sorri. – Por que não vamos a um lugar mais adequado para essa conversa?

- Pra onde, sua bruxa? – xinga Daniela, fora de controle. – Praquele lugar de onde acabou de sair, pra nos prenderem e nos transformarem em ratinhos de laboratório?

Não sinto que a mulher está se sentindo intimidada, pelo contrário. Está bem calma. Como se estivesse... Ganhando tempo.

- Dani! – chamo-a, mas ela nem se move. – Acho melhor darmos o fora daqui.

Dito e feito. Olhando pra trás, vejo dois jipes saírem por detrás das árvores. Daniela com certeza ouviu o motor deles, mas continua estática.

Ao longe, o furgão aparece, vindo ao nosso encontro. Abigail finalmente sai do carro, exibindo um radiotransmissor na mão que manteve o tempo todo oculta.

- Mais cedo ou mais tarde eu encontraria você. – sorri ela, ainda de óculos.

Daniela avança, mas Abigail saca um revólver do jaleco. Nem assim Daniela para, investindo contra a velha, que puxa o gatilho. Ao mesmo tempo, sinto uma pancada na cabeça, e só vejo o corpo de Daniela caindo antes de desmaiar.

 
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15 mordidas:

Juão disse...

é tão cruel me pegar lendo capitulo por capitulo agora,
tendo que aguardar a continuaçao.
eu nao devia me apegar e me apeguei a historia,,,,
foi otimo ler 10 capitulos como um zumbi louco por miolos
devorando um atras do outro...
agora sofro a prestaçao

a historia esta otima
vc tem uma ideia de quantos capitulos serao?
abraço

5 de setembro de 2008 às 05:54
Unknown disse...

capítulo 11=PERFEITO!
Tiago vc está ficando cada dia melhor cara!Nesse novo capítulo podemos ver que vc cresceu,evoluiu!
Parabéns continue assim!

5 de setembro de 2008 às 06:22
Anônimo disse...

Aeh cara, comecei a ler seu conto antes de ontem, li dez capitulos em um so dia.
História boa como a sua é algo difícil de se arranjar hoje em dia.
Peço que continue com o bom trabalho que tem feito, porque num sei se da pra aguentar ficar sem saber o final dessa história.(Que eu espero num estar tão perto)
Parabéns e mais um leitor pra vc

6 de setembro de 2008 às 03:06
Anônimo disse...

Meu Deus, que estória fantástica!! Não ouse parar de escrever!!!

Espero ansiosamente pelo próximo capítulo!

16 de setembro de 2008 às 04:13
Anônimo disse...

Show... Quero saber o que acontece
com a Dani e com o Tiago. xDDD
Curiosidade a mil @_@...

16 de setembro de 2008 às 04:49
Analista de sua própria vida disse...

Acompanhei a sua história até agora. Sou um fã do gênero e venero diretores como George Romero, criador do clássico A noite dos Mortos Vivos, de 1968 e claro, abomino filmes como Resident Evil, que diminuiu tanto a história original do game, quanto a do gênero zumbi. Quanto à sua história, achei muito original, sobretudo pelo fato de se passar no Brasil. Precísavamos de alguém que escrevesse ficção de horror, ramo da literatura que tem expoentes como Edgar Allan Poe, Anne Rice e Stephen King. O que lamento é a opção narrativa que você tomou: a primeira pessoa. Não que eu esteja achando seu trabalho ruim, mas é que a opção por este tipo de narrativa, restringe muito a ação psicológica das personagens, o que, pelo menos segundo a minha modesta opinião, mostra de fato o talento do autor. No mais, espero que o fim de sua história me surpreenda mais ainda.
Abraços.

17 de setembro de 2008 às 16:11
Anônimo disse...

Já li até este capítulo. Excelente história. Muito criativa. Espero que continue ainda por muitos capítulos.

29 de outubro de 2008 às 17:40
Tayná Tavares disse...

Assim que eu terminei de ler ontem, eu pensei sobre animais infectados, e sobre os mosquitos, que se eles fossem mesmo infectados o mundo já estaria fu**** a muito tempo. Mas caraleo, jamais imaginei que a vida deles ia virar um inferno tão grande.. ta muito boa a história *-*

18 de fevereiro de 2009 às 06:36
ErickTavarez disse...

Muito bom.

14 de julho de 2009 às 15:17
samuel disse...

cara odiei essa historia quanto mais eu leio mais da vontade de ler!!!!

caraca toy vc ta de parabens!!!!!


vc foi rascista com o ricardo oriental não é tudo igual não, é pq so eles sabem se diferenciar!

14 de agosto de 2009 às 20:09
~Lobo disse...

Agora ferrou tudo. Historia muito boa, to me sentindo um zumbi, ou sobrevivente...ou sei lá. Quero dizer q me sinto dentro da historia ^^

6 de março de 2010 às 18:33
Anônimo disse...

parabens

19 de março de 2010 às 16:54
Anônimo disse...

Otimo,mas ele sonha muito!

22 de abril de 2010 às 15:30
Tiago Toy disse...

Sejam bem-vindos novos infectados, e aos antigos, espero que continuem sobrevivendo.

Grande abraço!

6 de julho de 2012 às 23:49
Anônimo disse...

Eu n quero que daniela morra, n mesmo! !!!

16 de novembro de 2012 às 01:47

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