Capítulo 18 - Falsas esperanças


Meus dedos suados escorregam pelo cabo do pequeno canivete enquanto o gume força entrada na fechadura da porta de vidro do prédio na rua principal da cidade. O sol está a pino. Um calor de rachar o crânio. O sovaco de minha camiseta gruda na pele, cheirando mal. Desde que sai da casa do louco Moisés, não consegui parar para me limpar. Na verdade, nem tempo para pensar em tudo o que está acontecendo me restou.
Evito ao máximo emitir qualquer som que atraia um possível inimigo. Encontrar sobreviventes se tornou um evento raro. No entanto, esses... Zumbis! São dez em cada esquina. Meu peito até dói de tantos sustos que já levei vagando pelas ruas de Jaboticabal. Não entendo como as crises de asma não voltaram. Depois de tantos quilômetros percorridos, sem tempo para respirar. Devo estar mesmo curado.

Olhando através da vidraça vejo o saguão deserto. Aos pés da mesa de madeira da portaria há alguns papéis espalhados. O chão de mármore reflete a imagem do teto em alguns pontos não tomados pela poeira. Trata-se de um prédio religioso. Os padres da cidade o gerenciam. Há também o estúdio da rádio local em algum dos andares, não me recordo qual. Já estive aqui, antes de... Enfim.

Concentrado na tentativa de arrombar a porta não percebo a dupla surgindo há alguns metros. Geralmente são histéricos como demônios, mas sabem ser sorrateiros como sombras. Para o meu azar. Por um brevíssimo instante o metal da arma bate no vidro, fazendo um barulho mínimo, mas alto o suficiente para chamar atenção dos desgraçados. Devem ter audição aguçada essas pragas!

Nem espero os gritos infernais saírem de suas bocas fétidas. Pensando mais rápido do que de costume, pego a bicicleta caída na guia da calçada logo à frente pelo guidão manchado de sangue e arremesso-a contra a vidraça, que se parte numa chuva de estilhaços, espalhando-se por todo o saguão. O som faz surgir outro, mais assustador. Mais berros. É como se multiplicassem em questão de segundos.

Sem nem olhar pra trás, entro pelo rombo na porta num pulo e sinto os cacos sendo esmagados sob meu coturno. Um rápido escorregão não me desanima. O que me anima a correr são os gritos enraivecidos entrando pelo saguão logo atrás. Isso se “animar” fosse o termo correto.

Chegando ao elevador logo ao lado da mesa, aperto o botão para subir, freneticamente. Ainda lanço um rápido olhar em direção à porta antes de continuar correndo, fugindo do grupo que invade o prédio. A fim de desviá-los, corro até o fim do corredor e chego à outra porta, essa de ferro, dessas de subir e descer. Esse ponto é bem menos iluminado do que por onde entrei, mas não o bastante para que eu possa me esconder. Nem que pudesse. Seria difícil permanecer parado com tantos dentes e unhas prontos para dilacerar sua carne tão próximos.

Vendo-os chegando, viro para o lado e habilidosamente escalo a grade que leva ao piso superior do saguão. Olhando pra baixo os encaro enquanto esticam as mãos em minha direção, implorando por mim. “Me deixe te comer. Me alimente.” Essa é a única legenda que me vem a mente na cena que segue.

Continuo a corrida até o outro lado do piso, passando pela escada que traz ao mesmo e chegando a porta que leva a escadaria para os outros andares. Puxando-a, constato que está trancada. Droga! Como tiveram tempo de trancá-la? Que me lembre, nunca a trancavam, nem mesmo quando o prédio fechava. Ainda tento arrombá-la, mas o apito que ecoa pelo saguão me faz desistir da ação. O elevador chegou.

Gritando, chamo atenção de meus perseguidores. Não é uma tarefa muito difícil. Nem seria necessário gritar, visto que sobem a escada em minha direção rápidos como um ataque cardíaco. Espero-os por alguns milésimos de segundos, tempo suficiente para que quase me alcancem. No último instante, lanço-me novamente para o piso inferior num pulo preciso. De relance ainda vejo mais alguns invadindo pela porta destruída, mas nem espero. Puxando a porta de madeira, antiga, mas conservada, empurro a de metal e entro no elevador, batendo-a e pressionando-a com o corpo. Enquanto subo, ouço as violentas pancadas contra a porta. A imagem do saguão sendo dominado por uma multidão, que assisto pelo pequeno vidro na porta, some sob meus pés.

Respiro ofegante trazendo o oxigênio de volta aos meus pulmões. Em fugas assim não há tempo nem para respirar. A caixa metálica que me leva aos andares superiores me faz sentir num forno. O suor que desliza pelo meu rosto passa por meus lábios, proporcionando-me um discreto gostinho salgado.

Quando o marcador do terceiro andar acende, o mesmo apito é emitido. Lentamente abro a porta, logo após verificar pelo vidro se é seguro sair. Com metade do corpo pra fora, olho pros dois lados do estreito e iluminado corredor.



♦ ♦ ♦



Dando-me por mim, vejo-me sobre o garoto, segurando-o com força contra o piso escuro.

- Me solta, monstro! – grita ele.

Monstro. Monstro?

- Calma, cara. Eu sou normal. – ainda lanço-lhe um olhar, tentando ao máximo parecer menos hostil.

Sinto-o examinando-me fundo nos olhos. Ainda que mostrando-se demasiado agressivo, consigo enxergar o medo estampado em sua face. Após alguns segundos, sinto seus braços afrouxando-se. Devagar, o solto.

- Cara, foi mal. – se desculpa. – Mas é que uns loucos me atacaram. Achei que...

A fala some.

- Eu entendo. Sei o que tá acontecendo. Relaxa. – e levanto-me com certa dificuldade, ainda pensando no que me acontecera há pouco. Sinto o coração palpitar forte.

- E o que tá acontecendo?

A pergunta me atinge em cheio. O que tá acontecendo? É o que tenho me perguntado desde o dia em que acordei sobre o lixo ao lado do meu antigo trabalho.

- Bom... – tento encontrar as palavras certas. – Tem algum tipo de vírus infectando as pessoas e tornando-as cegamente violentas. É como se virassem canibais. Ninguém sabe de onde surgiu e como evitá-la. Na verdade, ninguém sabe de nada. Nem eu que tenho convivido com isso há semanas sei.

- Semanas? Como assim? – indaga o rapaz. – Isso começou hoje.

- Longa história.

Num suspiro, dou passagem para o silêncio tomar conta do local. Nos olhamos por um momento, seu olhar confuso buscando alguma resposta oculta em meu rosto. Como eu disse, não há resposta.

- Vamos lá pra cima com os outros. – chamo-o.

- Que outros? – a desconfiança estampa sua fisionomia.

- Outros sobreviventes. Cara, relaxa! Tenta não deixar o medo te dominar, senão nem precisa correr muito.

Virando-me, vou em direção a porta a fim de voltar à cozinha antes que sintam minha falta e venham me procurar.

- Espera! – chama ele. Fecho os olhos e respiro fundo, já sabendo o que está por vir. – Se você tá normal, o que foi aquilo que eu vi?

Antes de responder, exito um pouco.

- Qual seu nome? – pergunto, olhando em seus olhos.

- Oliver.

- Meu nome é Tiago, e te peço por favor que não conte a ninguém o que você viu. – enquanto faço o pedido, Oliver me fita sem piscar. – Há muito que explicar. Pode confiar em mim da mesma maneira que vou confiar em você. Ok?

O clima inicialmente tenso vai se amenizando conforme sua expressão muda para algo menos defensivo.

- Ok, Tiago. – responde ele, num sorriso. – Vai ser nosso segredo.

Pela primeira vez em muito tempo consigo sorrir de volta, em gratidão.



♦ ♦ ♦



Abrindo a porta da cozinha, por pouco não bato de frente com Daniela, que quase grita.

- Onde você estava?

Cobertura de um bolo de chocolate decora seu lábio inferior. Ela ainda demora uns instantes para notar o garoto. Confusa, pergunta.

- Quem é esse?

- Oliver. – ele mesmo se apresenta.

Olhando-o de baixo a cima, Daniela o ignora, retomando a bronca.

- O que você tá pensando, Tiago? Sumindo assim sem avisar. Fiquei preocupada, meu!

- Dani, não enche. – e passo batido, chamando Oliver com um aceno.

Alcançando-me, pergunta baixinho.

- Namorada sua?

- Bem que ela queria.

Sinto o olhar de Daniela varando-me pelas costas.

Na cozinha, nossa chegada atrai atenção total. Sobrancelhas se franzem devido ao novo integrante do grupo. Sinto-me nu diante de tantos olhares mesclados ao silêncio.

- Quem é você? – Lizzy é a primeira a se manifestar, ainda sentada sobre uma mesa de metal e com um pedaço de pão mordido na mão.

- Meu nome é Oliver. Oliver Sarag...

- É hóspede do hotel? – o interrompe Victor, com seu vozeirão que faz a cozinha quase tremer.

- Não. Eu só vim parar aqui enquanto fugia deles. Dos...

- Nós sabemos de quem, garoto. – É Conrado quem interrompe agora. Encostado em uma bancada, vira uma garrafa de champagne no gargalo enquanto segura um cigarro aceso na outra mão. Espero que não se aproxime de mim. Odeio cigarro.

- De onde você veio? – continua Victor, após lançar um olhar severo a Conrado.

- Do aeroporto. Meus pais me deixaram lá. Eu estava indo para o Texas. Mas aí as pessoas começaram a atacar umas as outras e não vi alternativa senão fugir. Foi muito rápido.

- O aeroporto é longe. Como veio parar aqui? – Victor parece desconfiado. Não entendo o motivo.

- De carro.

Oliver percebe o mesmo e olha na mesma direção que Victor. Carla e LC. Os dois estão um pouco mais afastados, e por um breve momento vejo-os cochichando. Não despregam os olhos do garoto.

- Quantos anos você tem? – dessa vez é Lizzy quem o interroga, mastigando.

- Dezessete, quase dezoito. – responde, com a atenção voltada a dupla nos fundos. – Espera! Eu vi vocês lá no aeroporto.

Carla e LC se entreolham.

- Nós? – questiona LC, num ar zombeteiro. – Você tá doido, moleque.

- Não, eu vi vocês lá. – insiste ele. – Lembro nitidamente dela.

E aponta em direção a Carla.

- Vi vocês lá dentro e depois vi de novo fugindo, numa van...

- Não era a gente, ok? – Carla finaliza a discussão.

- Tudo bem. – Oliver não entende a hostilidade. Nem eu? O que tem de mais se eles estavam ou não no aeroporto?

- Onde você o encontrou, Tiago? – pergunta Daniela, sem nem ao menos olhá-lo.

- Na lavanderia. Ele... – mudo o rumo da frase, numa pausa quase imperceptível. – Estava escondido lá.

- Dezessete anos, dirigindo em alta velocidade, sobrevivendo nesse apocalipse. – começa Conrado, balançando a garrafa esverdeada. – Era tudo o que precisávamos. Mais um filhinho de papai metido a super herói.

Dando outro gole na bebida, emite um som que por pouco se assemelha a uma risada.

- Você vai nos salvar, garoto?

Oliver me olha sem saber o que falar.

- Ignora ele. – respondo, sentindo-me a vontade para nem sequer lançar-lhe um simples olhar. – Ele é o comediante do grupo.

- Ele só esquece de ser engraçado. – solta Pooh, sério, enquanto come uma banana.

O comentário arranca uma careta divertida de Oliver. Conrado também faz careta, mas nem de perto divertida. Sinto que ainda tenta responder, mas mantém-se calado. Ele pode ser um otário, mas é um otário que não quer encarar uma montanha de músculos.

- Já que ninguém tem planos melhores para essa noite, porque não nos apresentamos? – sugere LC. Carla parece incomodada com a ideia, ainda olhando Oliver de um modo estranho. Percebo LC encarando-a de um modo a tranquiliza-la, o que não surte efeito.

- Pois eu acho uma ideia ótima, já que, pelo visto, seremos um time daqui pra frente. – diz Daniela.

Aproximando-me de mim, ela começa a contar desde que foi para minha cidade jogar com seu time, até o momento em que chegamos a São Paulo. Parece encher a boca ao contar a história toda. Apenas Pablo, Lizzy, Oliver, Pooh e Victor prestam total atenção. Carla e LC continuam aos cochichos. Conrado não desgruda de sua garrafa de champagne. Yulia nem ao menos entende o que estamos falando, aproveitando para ninar o bebê.

Dani continua, chegando ao acontecido com Ricardo, quando o sequestraram. A imagem daquela noite me vem à mente, nítida como aquele momento na cozinha. Não pudemos fazer nada para ajudá-lo.

- Como esse Ricardo era? – pergunta Oliver.

Daniela o olha com ar arrogante. O que ela tem contra o moleque? Acabamos de conhecê-lo.

- Ele era japonês. – respondo. – Mestiço, oriental. Sei lá. Tinha uns... Quantos anos mesmo, Dani?

Ela encara Oliver por um momento, antes de me responder.

- Dezesseis talvez. Não me lembro dele ter dito.

- Em que dia isso aconteceu?

- Não lembro.– respondo, fitando-o. – Era à noite, não marquei o dia. Uns homens de preto o cercaram. O tal amigo dele devia ser algum informante da LAQUARTZ, sei lá.

- LAQUARTZ?!?

- Calma que ela vai chegar lá.

- Por que o interesse no Ricardo? – indago, confuso.

- Deve ser namoradinho dele. – Conrado lança mais uma das suas, enquanto bebe sem parar.

- Enfim, como eu dizia... – Daniela continua.

A expressão de Oliver muda nitidamente. Parece incrédulo, olhando para um ponto no nada. Só eu percebi isso? Apenas o observo, calado. Talvez não esteja se sentindo bem. Sua fisionomia continua a mesma por um bom tempo, enquanto Daniela vai narrando nossa desventura.

Quando chega ao ponto em que fugimos da LAQUARTZ, eu mesmo a interrompo.

- O resto da história vocês sabem.

- Perfeitamente. –

brinca Lizzy. Os apuros que passamos pra sair de lá não é algo que se possa esquecer tão facilmente. – E você, Oliver? Qual a sua história?

Jogando os cabelos pro lado, o olha sem piscar, enquanto vai arrancando nacos do pão com as mãos e mastigando levemente.

Daniela vai para os fundos com Yulia. Ela nem faz questão de disfarçar a antipatia por Oliver. Que menina doida!

Oliver começa a contar desde que seus pais o deixaram no aeroporto até o momento em que encontrou Tiago.

- Então eu estava escondido atrás de alguns lençóis e fiquei esperando-o se aproximar. Quando sai detrás do pano com o ferro na mão, vi o Tiago. Ele... – arregalo os olhos ao quase ver a frase saindo de sua boca. Ele percebe e disfarça muito bem. – Ele me disse que havia mais sobreviventes aqui e subimos.

- E viveram felizes para sempre!

Conrado bate palmas, ainda encostado contra a bancada, mas um tanto mais “torto”.

- Cala boca, seu idiota! – xingo. Que cara mais chato!

- Não sei como você ainda dá atenção para os comentários do Bozo aí, cara. – brinca Pablo, encostado na geladeira de braços cruzados.

Não tive tempo de conhecê-los ainda, mas dá pra notar algumas características nas pessoas apenas olhando-as, e Pablo é o tipo de cara que agrada apenas usando o sorriso. Não tem o ar mais amigável do mundo, mas seus olhos passam um quê de “vem comigo, vem ser meu amigo”. Talvez seja a presença de seu fiel escudeiro, Thor, que não o deixa por um momento. Inclusive nesse momento o cão se encontra deitado sobre os pés do homem, de cabeça baixa, mas olhos abertos. Atentos. Acho que o único momento que Thor o deixa é quando decide se aproximar do bebê nos braços de Yulia, curioso, para logo depois voltar ao dono.

- Por falar nisso, de onde você veio? – pergunta Pablo a Conrado. – Do circo?

- Dos horrores! – zombo.

Alguns risos abafados são emitidos. Conrado franze a testa.

- Vim, do circo. – responde, olhando Pablo. - Era domador da sua mãe!

Pablo faz menção de investir, e no mesmo instante Thor levanta, olhando para o quase bêbado Conrado. Lizzy se ajeita sentada na mesa, pronta para apartar qualquer briga entre os dois. Pablo deve ser um cara sensato, pois apenas suspira, enquanto encara Conrado fundo nos olhos, e volta a sua posição original, enquanto o outro dá o último gole.

- Agora que já sabe de onde vim, - continua Conrado. – nos diga de onde veio. Do canil?

E começa a dar breves batidas com a garrafa vazia contra o mármore da bancada. Pooh apenas olha de lado com cara de poucos amigos. Aliás, cara de amigo nenhum.

- Bom, eu... – engasga Pablo. – Na verdade venho de vários lugares. Eu já... fui casado.

Não que ele estivesse sorrindo antes, mas ao mencionar o casamento, sua expressão se torna muito triste. É claramente visível.

- Éramos felizes. Demais. Mas então comecei a passar por alguns problemas pessoais e... – uma breve pausa. – Ela até tentou me ajudar, mas era mais forte do que nós dois juntos. Deixei-a se tornar mais forte do que nosso amor. – sua expressão volta ao normal. – Aí ela me deixou. Fim.

- Que problemas eram esses, cara? – Daniela e sua bendita curiosidade.

- Pessoais. – curto e grosso. – Não a vejo há quase um ano. A última vez que nos falamos foi por telefone, quando liguei para desejar Feliz Aniversário. Sua voz ainda era forte, mas doce. Minha única companhia desde então foi meu filhão aqui. – e, abaixando-se, afaga as orelhas de Thor, que curte o carinho com uma inclinada na cabeça. – Ela me deixou o cachorro, acho que para me vigiar, de início. Mas hoje não o troco por nada. Ele era cão farejador. Pertencia à PM de São Paulo.

- E como você o conseguiu? – pergunta Dani.

- Minha mulher era policial.

- Hum, entendi. – Dani não perde a mania de gostar de conversar. – E onde ela está hoje? Quer dizer, onde ela estava antes de... Ah, você sabe!

- Não sei, gatinha. – Pablo faz uma careta. – Fiquei sabendo que ela foi afastada do trabalho, não me pergunte por que. Até tentei descobrir o motivo, mas acredito que ela tenha exigido que essa informação não vazasse, especialmente para mim. Eu sei que deveria parecer mais preocupado, mas depois de tanto desinteresse da parte dela, decidi esquecê-la. E posso dizer que consegui.

Será que conseguiu mesmo?

- Desculpem, acho que perdi o foco da conversa. – Pablo sorri, tímido. – Quando tudo começou, eu estava saindo de uma pensão onde me instalei nas últimas semanas. Estranhei, pois estava tudo tão deserto. Quando vi a multidão correndo em minha direção, achei que estivesse sonhando.

Tendo um pesadelo, você quer dizer. Nem de longe o que está acontecendo se assemelha a qualquer sonho. É como se o demônio mais louco do inferno tivesse decidido pintar um quadro onde a realidade se tornasse a maior desgraça da história do mundo. Se essa era sua intenção, conseguira com êxito.

Pablo conta como encontrara Conrado e Yulia durante a fuga, e como foram resgatados pelo grupo de Victor.

- Agora eu diria para Yulia se apresentar. – e todos a olham, ninando o bebê e olhando-nos curiosa. – Mas alguém aqui sabe dizer “Como você veio parar aqui?” em russo?

- Não é possível que ela não saiba uma palavra em português. – comenta Lizzy, indignada. – Como alguém vai para um país sem saber falar um A na língua nativa?

- Talvez ela fale, mas não queira falar. – sugere LC.

- Por que ela faria isso? – sussurra Lizzy, olhando-a nos olhos. – Não acredito.

Enquanto alguns de nós olhamos a bela ruiva sem saber o que dizer, ela parece abraçar o bebê mais forte, a fim de protegê-lo. Definitivamente Yulia é a mãe do bebê. E, por falar nisso...

- Qual o nome do bebê? – pergunto.

Ninguém se manifesta. Pudera. Pablo olha para todos antes de ir até a garota.

- Pablo. – e aponta para si mesmo. Em seguida, indica-a com o dedo. – Yulia.

Apontando para a criança, aguarda uma resposta. Yulia o olha fundo por alguns segundos e desvia para o bebê. Mirando-o carinhosamente, porém estranhamente assustada, pronuncia.

- Yerik.

- Yerik. Bonito nome. – elogia Lizzy.

Antes que Lizzy continue, vejo Conrado recomposto, olhando fixamente para um ponto. Na verdade para uma pessoa. Yulia. Não desvia o olhar nem pisca. Aposto que se soubesse russo já a teria brindado com uma de suas “engraçadíssimas” piadas.

- Alguém mais quer se apresentar? – continua a agente. – Sr. Conrado?

- Como se eu fosse perder meu tempo.

- Ótimo. O negócio é o seguinte, pessoal. Nossa única alternativa no momento, levando em consideração a quantidade de infectados lá fora, é permanecermos neste hotel. – Victor se aproxima dela, postando-se como um guarda-costas. – Precisamos lacrar todas as entradas e exterminar os que restam aqui dentro. Para isso precisamos que todos ajudem e rápido.

- Certo, Mulher-Gato. – começa Conrado. – Vamos nos trancafiar aqui... Até quando?

- Até conseguirmos entrar em contato com alguns colegas que possam nos resgatar.

- Colegas? – Oliver questiona. – Vocês não acham que o Governo vai mandar resgate para os sobreviventes?

- Melhor não se animar muito, garoto. – Victor joga o balde de água fria. – Elizabeth está certa. Nossa opção atual é tornar esse hotel uma fortaleza. Mas antes...

Victor se aproxima de Yulia e estende a mão. Sinceramente, é quase cômico um gigante daquele se comportar como um cavalheiro. Ainda mais estranho quando Yulia pega sua mão, após exitar por um instante. Guiando-a até o armário que serviu de refúgio para Pooh e Conrado há quase uma hora atrás, abre a porta e faz sinal para que ela entre.

- Melhor que fique aqui e proteja o bebê. – e puxa a arma da cintura. – Vocês três também.

E aponta para Dani, Oliver e eu. Daniela nem me espera, rapidamente entrando na despensa. Quanto mais tempo puder se manter afastada deles, melhor. Oliver me olha e faz um aceno com a cabeça. Encarando Victor, sigo o garoto até o estreito cômodo. Ainda tenho tempo de ver a expressão indignada de Conrado, que só pára de bater a garrafa contra a bancada nesse exato momento.

- Quanto ao resto, vamos!

E fecha a porta.



♦ ♦ ♦



Num chute certeiro do potente pé direito de Pooh, a porta da cozinha escancarou-se. Os sete ou oito infectados que se encontravam vagando pelo restaurante olharam quase que juntos para a origem do barulho, guinchando como animais. Pooh, Lizzy e Carla tomaram a dianteira assim que os viram capotando por sobre as mesas a fim de atacar-lhes sem piedade. A fúria os cegava, fazendo qualquer coisa sumir da frente no momento em que viam outro humano ainda são. Nada os detinha, salvo a saraivada de tiros que saía das armas dos três agentes. Sangue escuro manchou as belas toalhas brancas de fino trato que ainda se mantinham intocadas sobre as mesas, esperando um caro jantar que nunca viria. Taças se espatifaram no piso laminado, provocando sons que alfinetaram seus tímpanos. Após breves segundos, nenhum infectado restara de pé.

Avançando pelo próximo corredor, Pooh e Victor tomaram a dianteira. Sempre atentos a qualquer ruído, por mínimo que fosse. Lizzy e Carla os cobriam, esperando um possível ataque furtivo pelas costas, enquanto Pablo e Conrado iam no meio. Conrado não estava gostando nada daquilo.

- Não tem cabimento essa palhaçada! – resmungava ele, de voz baixa para não atrair mais companheiros indesejados. – Por que não me deixaram na despensa?

- Precisávamos de uma isca, ora! – brincou Carla, piscando para Lizzy num sorriso, ainda mantendo a arma engatilhada e pronta para atirar.

Lizzy olhou Conrado de relance, constatando que ele não gostara nada da piada, suando frio. Seus olhos corriam de um lado pro outro enquanto andava próximo a Pablo, tão tenso quanto qualquer um ali. Thor os acompanhava e parecia entender o que estava acontecendo, pois andava tão calmamente quanto o grupo. Suas orelhas sempre erguidas.

Atravessaram o extenso corredor dispostos a chegar logo ao destino final. As portas laterais que davam acesso ao saguão principal. Derrubaram alguns infectados com tiros certeiros na cabeça. Talvez quinze, não contaram. Felizmente não havia tantos a ponto de impedir que concretizassem seu plano. Fechar as portas e bloqueá-las.

Pegando duas barras de ferro de uma grade no corredor, Pooh as usou para travar as portas, prendendo-as entre os puxadores de metal. O procedimento retardaria a invasão por algum tempo, enquanto não encontravam uma maneira mais eficiente de impedir que entrassem. Agora não poderiam entrar no hotel, pelo menos não pelo saguão.

- Vocês dois vão com a gente. – Victor indicou para que Pablo e Conrado o acompanhassem juntamente com Lizzy. – Ivan, Carla e LC sigam ao último andar pelo elevador e desçam limpando tudo. Nos encontraremos na metade do caminho. Tentem não morrer.

- Belo conselho. – debochou Conrado, indignado por ter que segui-los.

- Você não. – continuou Victor. – Pode morrer à vontade.

Nesse momento ninguém riu, ainda que fosse uma piada e tanto. A tensão estava à flor da pele. Assim que o trio virou o corredor que conduzia ao elevador, o grupo de Victor subiu o primeiro lance de escadas enquanto o painel numérico sobre o elevador ia aumentando.



♦ ♦ ♦



Pooh foi o primeiro a sair do elevador assim que chegaram ao sétimo andar. LC saiu em seguida, acompanhado pela mulata.

- Você acha que é uma boa ideia essa do Victor, nêga? – LC cochichou para Carla, estampando insatisfação em seu rosto. Quem estaria satisfeito em estar no último andar de um prédio tomado por loucos canibais?

- Boa ou não, tú sabe que precisamos ficar com ele. – respondeu ela, quase sussurrando. – Ainda mais agora.

A dupla parecia evitar que Pooh os escutasse, sendo que o grandalhão se mantinha concentrado no corredor, pronto para o que viesse. Talvez apenas não quisessem falar alto.

Abrindo sucessivamente as portas ao longo do trajeto, não encontraram uma viv'alma. Havia sangue em algumas partes do andar, mas nada comparado ao que viram antes.

- Quem estava aqui deve ter fugido. – Pooh comentou, olhando fixamente um lençol manchado de vermelho. – Ou deve ter descido em busca de novas vítimas.
Checando todos os quartos do sétimo andar, o trio chegou à escadaria que levava ao sexto.



♦ ♦ ♦



- Victor! Atrás de você!

Lizzy gritou, dando tempo para que ele evitasse com um tiro o ataque de um infectado que saíra de um dos quartos, gritando como sempre. Guinchavam como demoniozinhos sendo pisoteados. Se pisotear resolvesse seria bom. Não seria necessário gastar cartuchos inteiros de munição para exterminá-los. Em certos momentos nem era possível lembrar que, na verdade, eles eram humanos. A humanidade fugira de seus olhos, de sua essência. Não restara nada.

Rápidos como mágica mais dois surgiram de outro quarto, avançando contra Lizzy e Pablo.

- Se protege! – orientou ela, empunhando a submetralhadora.

Pablo manteve-se logo atrás, sem mover um músculo, mas pronto para correr caso fosse preciso. Os tiros certeiros da loira o fizeram relaxar um pouco. Bem pouco.

- Pode sair, seu medroso! – chamou Pablo, conversando com uma cortina.

Logo em seguida, o pano moveu-se para o lado, exibindo o rosto assustado de Conrado.

- Já mataram todos?

- Vá na frente e nos diga. – sugeriu Lizzy. Lógico que ela estava brincando, andando em direção a Victor. – Vic, acha que tem mais algum nesse andar?

- Provavelmente. E se não tiver, terá, pois o barulho vai atrair os que estiverem em cima.

- Então por que viemos por baixo?

– reclamou Conrado, esforçando-se para falar baixo.

- E qual seria a graça? – brincou Elizabeth. – Vamos.

E seguiu em direção a próxima escadaria, derrubando dois infectados que desciam correndo, descontrolados.



♦ ♦ ♦



Postados em fileira aos pés da escadaria, o trio observava silenciosamente o extenso corredor do sexto andar. Ao longe conseguiam ouvir tiros alguns andares abaixo e gritos abafados pelos mesmos.

- A festa deve tá boa lá embaixo, hein! – comentou Carla.

Pooh deu o primeiro passo após resmungar um “Humpf” ao comentário. Em momentos assim o grandalhão costumava se concentrar tanto que parecia estar em transe. Sobrancelhas grossas e cerradas combinavam com seus olhos sempre atentos, num tom azul acinzentado. Suor deslizava por sua testa de uma pele bronzeada, passando pela cicatriz em seu supercílio esquerdo, quase alcançando o olho se não fosse a forte mão direita esfregando o cenho.

- Vão por ali enquanto eu vasculho esse lado.

Carla e LC assistiram Ivan seguir pelo corredor e parar diante de um quarto. A luz emitida do aposento o iluminava de uma forma a enfatizar seus músculos sob a justa camisa antes branca, agora suja de sangue e fuligem.

Um guincho. Pooh levantou a arma e mirou. Um tiro. Pooh entrou no quarto.

O casal seguiu ao lado contrário. Se prepararam para qualquer ataque de algum atraído pelo barulho. Até o fim do corredor o ataque não veio. Assim que viraram, avistaram uma mulher rastejando pelo carpete. Suas pernas tinham sido dilaceradas, sobrando apenas a coxa da perna direita e pouco abaixo do joelho na esquerda. Estava nua e com várias partes não vitais de seu corpo arrancadas às mordidas. O sangue desenhava o trajeto feito pela pobre coitada, saindo de um quarto próximo.

- Espera! – LC pediu assim que Carla mirou sua arma em direção à infectada.

Sob o olhar curioso da parceira, o agente caminhou cautelosamente até a mulher, que percebeu a presença, reagindo rapidamente.

- A bicha é brava! – brincou LC no momento em que ela se debateu, tentando virar pra trás.

- O quê tu vai fazer, cara? – perguntou a mulata, sem entender.

- Calma, nêga! – se aproximou. – Só quero... – desviou de suas mãos – ver... – agarrou-a pelos cabelos – se eles... – a arrastou de volta ao quarto – conseguem... – levou-a até o banheiro – respirar... – constatou que a banheira estava cheia - debaixo... – e jogou-a dentro d’ – água!

Segurando-a pelos longos e encaracolados cabelos castanhos ensebados pelo sangue, forçava sua cabeça para o fundo da banheira enquanto a infeliz se debatia, tomada pela fúria. Parecia um animal sendo abatido.

- O que você tá fazendo, maluco? – Carla olhava a cena, incrédula.

- Descobrindo se essas desgraças estão vivas ou mortas! – LC parecia uma criança brincando. Seus olhos brilhavam enquanto o chão era ensopado. – Se ela morrer afogada é porque respira. Portanto, está vi...

Num deslize, a infectada girou o corpo de uma maneira que fez LC escorregar e cair dentro da banheira.

- LC! – gritou Carla.

Sacando a arma, não sabia o que fazer. Mirar era impossível, devido à violenta briga que se iniciou em meio aos esguichos de água que espirravam por todo o banheiro enquanto os gritos de LC e da mulher se misturavam.

O rapaz a segurava pelo pescoço, impedindo-a de aproximar os dentes contagiosos de seu rosto. Era realmente uma brincadeira mortal.

- Atira! – gritava ele, enquanto a louca se debatia esforçando-se ao máximo para destruí-lo com a mandíbula assassina. – ATIRA!

- Não consigo mirar!

Carla estava desesperada.

Numa tentativa de fuga, LC forçou o pé contra o estômago da insana criatura e a empurrou, fazendo-a bater as costas contra a borda da banheira, num guincho. Levantando-se o mais rápido que pôde, o agente se distraiu, sem perceber mais um ataque vindo da mulher.

- Ela vai te morder! – gritou Carla.

O som do tiro abafou a explosão de metade da cabeça da infectada. Sangue e miolos mancharam o azulejo branco do recinto. Água e sangue misturados deslizavam pelo chão, chegando à sola da bota de Pooh, que permanecia imóvel ao lado de Carla.


LC estava com os olhos tão arregalados que por pouco não pularam das órbitas. O susto o deixara tão pálido quanto um lençol. Não seria nenhuma surpresa se tivesse borrado as calças.

Atirando-se para fora da banheira, caiu sentado no chão molhado.

- Porra! Irmão, essa foi por pouco! Se você não che... Ei!

Encarando a submetralhadora de Pooh em sua testa, LC ficou mudo diante do grandalhão. Uma veia saltava em sua têmpora.

- Se quiser morrer é só pedir que eu acabo com você agora, imbecil! – as palavras saíam baixas, mas firmes. – Mas não coloque ninguém em risco com a sua infantilidade.

O silêncio permaneceu por alguns segundos no grande banheiro. Carla olhava Pooh parado com a arma na cabeça de LC. Pooh olhava LC fundo nos olhos, possesso. LC olhava a burrada que fizera.

Sem dizer mais nada, Ivan virou-se e saiu do banheiro. LC se levantou devagar, totalmente sem graça, enquanto Carla o fitava com ar de repreensão. Se recompondo, foram atrás do outro.



♦ ♦ ♦



A submetralhadora surgiu devagar pela fresta da porta entreaberta. Olhos castanhos brilharam pela fraca luz que atravessava o fino vão. Refletido nos brilhantes olhos de Lizzy o homem deitado sobre a cama ensanguentada gemia, solitário.

- Pobre coitado!

Lizzy sussurrou com pena ao deparar-se com a falta dos membros do infectado. Inferiores e superiores. O máximo que sobrara foram os cotovelos de um braço e os joelhos. Uma de suas pernas encontrava-se abandonada no carpete, dilacerada aparentemente a mordidas. O braço esquerdo ainda fazia parte de seu corpo, pendurada por um osso exposto. Um osso branco e roído.

Num quase imperceptível rangido a porta foi aberta. Instintivamente o infeliz girou a cabeça para o lado, olhos arregalados e furiosos. Num guincho, sangue escorreu pelo canto de sua boca escancarada. Ao esticar o braço esquerdo em direção à agente, parada na soleira da porta, a parte pendurada balançou num movimento de arrepiar qualquer humano propriamente dito.

- Que nojo!

Conrado fez uma careta enjoada postado atrás de Lizzy, que só olhou de lado. Voltando ao moribundo, deu o tiro de misericórdia e ajeitou a franja atrás da orelha direita logo em seguida, enquanto o sangue escorria pela parede.

- Esse tá limpo, Victor! – gritou ela, voltando ao corredor e desviando o corpo do quarentão logo atrás, que só olhava para o corpo inerte sobre a cama.

- Isso nunca vai ficar limpo. – reclamou o negão, recarregando sua arma. – Olha pra isso! Quantos mais faltam?

Diante de seus olhos, corpos e mais corpos amontoavam-se pelo corredor, num rastro de defuntos baleados, despedaçados, infectados. A fraca luz do corredor dava à cena um ar mais mórbido do que o natural. Como se já não bastasse a morbidez da situação sem iluminação especial.

Um grito feminino foi ouvido. Os quatro entreolharam-se. Um sobrevivente talvez?

Lizzy foi a primeira a entrar pelo quarto à esquerda, indo diretamente até a janela que dava para a piscina do hotel.

Uma mulher usando trajes de banho corria pela grama que cercava um dos lados da piscina. Estava desesperada. Seus longos cabelos loiros dançavam freneticamente de um lado pro outro enquanto era perseguida por dois canibais. Dois homens. Um era bem robusto e usava apenas calção de banho. O outro era mais baixo e usava camisa regata vermelha e sunga. Era possível ver marcas de sangue nos dois.

- Socorro! – gritava ela.

- Caralho! – Pablo se alarmou. – Ajudem ela, gente!

- Tá muito longe! – reclamou Lizzy.

- Tenta pelo menos!

Pablo olhava fixamente a mulher em seu percurso desesperado de fuga. Típica cena de filme de terror, ela tropeçou no próprio pé, caindo adiante. Em vez de levantar, gritava mais alto.

- Atira! – Pablo berrou, enquanto Thor latia ao fundo.

Lizzy respirou fundo e mirou. Em questão de milésimos de segundos atirou. O infectado maior capotou, caindo de queixo no chão, permanecendo-se imóvel. Surpresa, a mulher olhou pra cima.

- Socorro!

Em choque, nem se deu ao trabalho de levantar, esquecendo-se do outro.

- Corre! – gritou Pablo mais uma vez, acenando com os braços.

Mas era tarde. Só ouviram os gritos de dor da mulher, enquanto suas mãos e pés chacoalhavam sob o corpo do outro infectado, que a atacava sem piedade.

- Atira, Lizzy! – pediu Pablo.

- Não dá mais, cara. – avisou ela, com a voz suave.

Virando-se, saiu do quarto, enquanto Thor roçava o focinho na perna do dono, cabisbaixo. Conrado foi logo atrás de Victor.

- Pobre vadia! – cochichou ele, consigo mesmo.

Pablo apenas olhou-o pelas costas. Uma faísca de ódio brilhou em seu olhar, enquanto tiros foram disparados no corredor.



♦ ♦ ♦



- Será que eles ainda estão vivos?

Oliver faz a pergunta na maior inocência, o que atrai o olhar curioso de Daniela, que não trocou uma palavra desde que os outros nos deixaram na despensa.

- Espero que sim. – respondo, tentando tranquilizar a todos, inclusive a mim.

Esse pessoal pode nos ajudar um bocado com todas essas armas. Parecem ter sido treinados para o que está acontecendo. Na verdade estão lidando bem demais com a situação. Bom, que seja, desde que nos ajudem. Não pedi ajuda, pra falar a verdade. Tenho convivido com isso há tanto tempo que posso me virar sozinho. Mas ajuda nunca é demais. Que me ajudem enquanto estiverem vivos.

- Tiago, tô com fome! – Daniela reclama.

A olho por longos segundos antes de responder.

- E...? Eu tenho cara de comida?

- Idiota! – diz ela, franzindo a testa. – Você tá cheio de graça desde que...

Por um momento se cala.

- Desde quando? – pergunto.

- Esquece!

Arrumando os cabelos desgrenhados, olha pela fresta da porta.

- A cozinha tá vazia. Vamos sair. Eu não aguento mais ficar trancada aqui.

- Acho melhor esperarmos eles voltarem. – oriento.

- Tá dependendo de babá agora? – debocha ela. – Eu vou sair.

- O quê você tem, garota? – pergunto, entre dentes. – Vamos esperar eles voltarem. E se aparecer algum infectado? Estamos desarmados!

- Eu acho melhor ficarmos aqui. – opina Oliver, olhando-a fixamente nos olhos.

- E eu acho melhor cada um fazer o que quiser. Estamos num país livre! – diz ela, empurrando a porta logo em seguida.

Por descuido ela não verificou a cozinha por completo antes de nos expor. Um infectado estava do outro lado, vagando. Ao avistar Daniela, atira-se em nossa direção num berro, derrubando uma panela vazia no ataque.

- Daniela! – grito, puxando-a pelo braço.

Oliver bate a porta logo em seguida, segurando-a fortemente, enquanto o infectado se debate contra.

- Viu? Eu avisei.

- Como eu ia saber Tiago? – se desculpa ela, vermelha.

- Era só não abrir a porra dessa porta! – grito. – Tá cheio de comida aqui. Pra quê sair?

Daniela me olha fundo. Seus olhos enchem-se de lágrimas. Com os lábios trêmulos, sussurra.

- Desculpa. Eu...

E cai no choro. O quê ela tem? Será estresse pós-traumático? Não. Ela está passando por isso há tanto tempo quanto eu. Então o quê é, afinal?

- Desculpa...

- Ok, relaxa. – tento acalmá-la enquanto ajudo Oliver a manter a porta fechada.

O garoto apenas evita olhar diretamente para ela. Na verdade me deparo com seus olhos fixos em mim várias vezes. Retribuo curioso. Deve estar confuso com tudo isso.

Yulia permanece ao fundo, abraçada a Yerik. O bebê resmunga algumas vezes, envolto nos braços firmes da garota, que parece mais calma vendo-nos protegendo a porta.

- Ele não vai entrar, fica tranquila! – aviso, mesmo sabendo que é em vão, diante do olhar da ruiva.

Daniela continua de cabeça baixa.



♦ ♦ ♦



Os sons de meus passos são abafados pela maciez áspera do carpete empoeirado. Sinto-me surdo por alguns instantes, à medida que o silêncio torna-se nauseante. Tranquilizador.

Dez passos depois uma figura projeta-se detrás de uma porta entreaberta, roubando-me um pulo para trás. Reflexo de gato. Sobrevivência.

- Que susto, porra!

O garoto se mantém calado diante de minha explosão. Imóvel, me examina enquanto segura uma vassoura de cabo vermelho gasto. Seus olhos curiosos brilham.

- Foi mal, amigo. – desculpa-se, deixando a defensiva. – Achei que fosse um deles.

Com a mão no peito, retomo calmamente a respiração. Não o culpo.

- Tudo bem. – e limpo o suor em minha testa. – Você tá sozinho aqui?

- Não. Vem comigo.

Seguindo-o, chegamos a um pequeno escritório bagunçado. Deserto. Aos poucos vai sendo reocupado. Um homem em vestes religiosas sai detrás de uma porta mais ao fundo. Logo em seguida, duas mulheres o seguem como sombras. Uma mais velha, a outra mais negra.

- Quem é esse, Luciano?

A pergunta vem da mais escura. Veste uma blusa amarela desbotada, calças largas de um azul marinho opaco e desponta os cabelos encaracolados presos num rabo de cavalo cheio de fios desgrenhados.

- O causador do apito no elevador. Podem ficar calmos. Ele tá bem.

- Qual seu nome, menino?

Dessa vez é a senhora que se manifesta. Olhos azuis observam-me de cima a baixo, preocupados. O cabelo curto e ruivo brilha em contato com a fresta de sol que invade pela janela logo atrás. O traje social escuro dá-lhe um ar mais sério.

- Tiago. E vocês?

- Meu nome é Luciano, sou o porteiro do prédio. – se apresenta meu anfitrião.

Tem minha altura, mas menos corpo. O cabelo liso e castanho claro aponta para a esquerda, sobre um rosto amigável e de óculos. A camisa social por fora da calça preta mostra-se bastante amarrotada.

- Essa é a Cida, secretária do padre Milton, logo ali. – continua, referindo-se a mais velha e ao homem alto e calado ao fundo. Sua batina negra pende em direção ao chão, imóvel. – E ela é a Tuca, a faxineira.

Já os vi antes, quando visitei o prédio, em tempos menos hostis. Fui à rádio local, localizada, se não me engano, no andar superior. Não me lembro o que fui fazer lá, mas lembro que fui.

- Há quanto tempo vocês estão aqui? – pergunto.

- Há alguns dias, não sabemos. – responde Luciano. – Desde que essa loucura começou.

Enquanto vai contando, Cida vai até a janela e observa. A faxineira rapidamente tranca a porta por onde entramos, visivelmente assustada.

- Estávamos saindo do prédio no fim do expediente quando percebi a agitação na rua. Era um corre pra lá corre pra cá, gritaria. De repente, o sangue. Foi aí que percebi que a coisa era séria. Tranquei a porta da entrada e corri até o elevador, onde encontrei os três descendo. Contei o que estava acontecendo e ficamos parados na janela do segundo andar assistindo tudo. Era irreal.

O padre senta-se calmamente no sofá em minha frente, olhando-me fundo nos olhos. Parece estar me estudando. Me incomoda.

- Quando a polícia chegou, imaginei que tudo ficaria bem. Ledo engano. Piorou. Os tiros derrubaram alguns e atraíram outros mais. Parecia uma guerra. Homens contra animais. Cara, um pesadelo total. Era um jogo de pega-pega macabro.

Olhando em seus olhos, até consigo assistir à cena descrita como um filme. De terror.

- Tentamos descobrir algo pela TV, mas estava tudo fora do ar. Todos os noticiários da região estavam fora do ar. A programação estava normal, sabe, mas quando chegava a hora do jornal local, ficava sem transmissão. Daí apagou tudo. Nem TV aberta nem fechada nem nada.

Com a correria, nem me lembrei de ver TV. Esse detalhe passou batido.

- O locutor da rádio, o Halley, tentou transmitir qualquer coisa durante algum tempo, mas sem comunicação foi logo se cansando. Parecia que algo estava bloqueando a antena. Alguém, sei lá. O negócio é que nada saía nem entrava de Jaboticabal. Nos transformamos numa cidade esquecida. Era muito estranho.

- E como se alimentaram durante esse tempo todo?

- O Halley e eu saímos um dia e fomos até a lanchonete do outro lado da rua. Aproveitamos que não havia ninguém à vista. Cara, foi por um triz. Tivemos que ficar lá metade da noite, com muita comida num saco. Não deu pra sair, pois eles surgiram na rua. Acho que os atraímos pelo som. Ou pelo cheiro, quem sabe. Eles investiram contra a lanchonete, mas saímos pelos fundos, conseguindo despistá-los. Ainda fomos surpreendidos por um deles, mas Halley o derrubou com um soco. Fomos seguidos até o elevador, mas subimos correndo.

- Mas a porta estava trancada. – lembro-me desse detalhe nitidamente.

- Ah, sim! Halley desceu no dia seguinte e a trancou novamente. Não podíamos facilitar.

Submerso na história, volto à tona com o som de um murmúrio. Seguindo-o com os olhos, vejo o padre resmungando algo. Seus lábios tremulam à medida que palavras disformes se atropelam boca afora.

- O senhor está bem?

Nossos olhos se encontram.

- O inferno...

Sem piscar.

- Invadiu...

Sem mover.

- A Terra.

As palavras formam uma frase louca, impossível. Inaceitável.

Ele está certo.

- Não liga pra ele, cara. – Luciano pousa a mão direita sobre o ombro largo do idoso, afetado. – Depois que o Halley sumiu, ele ficou assim. Acho que pirou.

Numa conversa muda, olho no olho, eu sei que ele não está louco. Não completamente.

- E esse Halley? Sumiu como?

- Bom, depois de uns dois dias após nossa busca por comida, ele ainda tentou se comunicar pela rádio, mas como não conseguiu, acabou desistindo. Ficou muito abalado, estava claro. Não aguentava vê-las – e aponta as duas mulheres – assustadas, acuadas. Engraçado que eu percebia nos olhos dele o mesmo que percebo em seus olhos. Vontade de ajudar. Compaixão. Eu sei, é duro querer ajudar quem precisa e não poder, né?

Acho que me perdi no “engraçado que eu percebia”. O que ele estava falando?

- Pediu que eu cuidasse deles enquanto ele buscava ajuda. E saiu. A última vez em que o vi foi há alguns dias. Três, se me lembro bem. Desceu pelo elevador e não voltou mais. Deve estar protegido em algum lugar.

Deve estar morto, isso sim.

- Ele vai voltar com ajuda, tenho fé em Deus que vai.

Cida não tira os olhos da rua ao dar sua opinião. Mantém as mãos contra o vidro embaçado pelo calor amarelo.

- Enfim... – levanto, sentindo o couro do sofá voltando a sua forma original. – Você pode me levar até a rádio?

Caminho até a senhora e olho para a mesma direção.

- Não adianta, amigo. O Halley que entendia tudo daquilo não conseguiu.

- Não custa tentar mais uma vez. Custa?

Assisto a imagem alguns andares abaixo, parado ao lado de Cida. Eles infestaram a frente do prédio. Sabem que estamos ali.

Calados, tememos. Ela, por todos, eu por mim.



♦ ♦ ♦



A limpeza no hotel continuou normalmente.

À medida que o grupo de Lizzy foi subindo, o de Pooh foi descendo, libertando as almas dos pobres coitados que insistiam em atacar mesmo diante dos buracos quentes das armas, que vomitavam balas mortais. A munição ia acabando, assim como os infectados. Pooh aproveitou duas vezes para poupá-la, matando dois de uma vez com um tiro certeiro nas cabeças. Lizzy foi menos confiante e mais generosa, derrubando um por um com um tiro pra cada.

Conrado tornou a diversão mais desgastante com seus freqüentes comentários infames. No mínimo dois por andar. Pablo não disfarçou a ânsia por socá-lo, segurando a vontade várias vezes. Carla e LC permaneceram juntos o tempo todo, protegendo-se. Após o incidente na banheira, o motorista procurou ser mais cuidadoso, derrubando os infectados a uma distância considerável. Thor nunca se aproximava de nenhum deles. Só latia. E latia. E rosnava e latia. Pablo o observava a fim de mantê-lo a salvo. Era como o filho que ele não teve.

Minutos passaram como horas. Os dedos calejaram de tanto apertar os gatilhos frios. Corações calejaram de tanta adrenalina. O medo nunca os deixava.

Encontrando-se na escada do terceiro para o quarto andar, constataram que o trabalho estava terminado, por ora.

- Podemos dar uma pausa à salvação do mundo e voltar pra cozinha? – implorou Conrado, sarcástico. Nem o medo estampado em seus olhos o impelia de tentar ser engraçado. Irritante.

Ainda alertas, desceram.

Nenhum infectado apareceu no caminho. Parecia que terminaram mesmo. Foi difícil, desgastante, mas valeu a pena.



♦ ♦ ♦



Chegando à cozinha, se deparam com um homem vagando diante da porta da despensa.

- Mais um de bandeja pra vocês.

Victor ergue a submetralhadora após o comentário de Conrado e mira a cabeça do infeliz, que nem vê de onde veio e nem pra onde foi. O sangue espirra na porta, quê se abre lentamente.

- Foram rápidos, hein! – brinco, nervoso.



♦ ♦ ♦



Da noite fria a fina chuva cai tímida.

Acho que o dia se manteve com esse chuvisco sem fim, sem som, sem cor. Apenas incessante e gelado. Ah, como era bom dormir com os pingos da chuva na janela. Hoje os gritos assassinos as invadem sem pedir licença. A cada berro é um novo arrepio. Vozes de lamento, de raiva, de fome. Palavras sem nexo. Pedindo por nossa carne.

- Não aguento mais essa gritaria!

Daniela tampa os ouvidos com a cabeça baixa. Desde que saímos do armário ela se manteve calada. Isso faz uma hora mais ou menos. Viemos pra esse quarto no terceiro andar, trazendo o máximo de comida que conseguimos – e encontramos. A luz do dia se foi sem despedir-se, deixando-nos à mercê da escuridão clara da noite. E a chuva.

- É melhor você comer e tentar esquecê-los por um momento. – Pablo dá a dica a Dani, enquanto mastiga ferozmente um grande pedaço de pão caseiro.

Ela hesita antes de levar as mãos em direção ao pedaço de bolo de creme numa bandeja. Hesita mais uma vez antes de levar o bolo em direção a boca. Mastiga hesitantemente.

Lizzy e Pooh sempre juntos comem calados. Logo atrás, Victor se alimenta também. Parece um touro sentado, com sobrancelhas eternamente curvadas pra baixo. Cara de bravo. Sério. Acho que ainda não o vi sorrir. Na verdade, acho que quase ninguém sorriu até agora, desde que nos conhecemos. Ou desde que fomos praticamente obrigados a nos manter juntos. A situação, se não fosse tão séria, seria engraçada.

O único que vi sorrir nos últimos minutos é Oliver. Um sorriso discreto. O peguei me olhando um momento atrás. Estava tão perdido em meus pensamentos que até me assustei quando me deparei com seus olhos curiosos. Retribuí, com uma careta disfarçada de sorriso. Devo tê-lo assustado.

Na TV a programação é interrompida severamente. O noticiário vai e vem sem pedir licença. É notícia atrás de notícia. O pior é que não informam nada de importante, além da destruição de mais da metade da Capital por um ataque pelos próprios cidadãos. Uma doença os tornou insanos, raivosos. Raiva humana. Um vírus desconhecido. Recém-liberado. Um tipo de Ebola. Peste negra. Uma gripe. Infecção.

Ouço tantas denominações para o que está acontecendo que quase me esqueço qual é o único e verdadeiro nome disso.

LAQUARTZ.

Afinal, o que fizeram? O que estão fazendo? Por que o fizeram? Qual a finalidade disso tudo? Quanto mais tento me aproximar de uma explicação racional, mais me afasto da verdade.

“Desculpe pelo método que usamos para lhe trazer aqui, mas não podíamos perder a chance. Você caiu do céu, garoto!”

A voz da velha Abigail brinca em minha cabeça. Usa meu cérebro como pula-pula, confundindo-me.

Você caiu do céu, Tiago!

Tiago.

-Tiago!

A voz alterada me faz pular do transe. Oliver.

- Oi. – tento disfarçar a breve viagem interior que tive.

- Esse papel é seu?

Olho em direção onde seu indicador aponta. Meus pés.

Deve ter caído enquanto ouvia a voz. Sem responder o pego de volta, ainda dobrado, e guardo onde estava, sentindo algo esquecido no fundo do bolso. Uma seringa com um líquido escuro e denso. Roxo.

Por um breve momento sinto o metal frio daquela mesa onde acordei colado em minhas costas nuas. Depois percebo que a noite está esfriando mais. Levanto-me enquanto todos permanecem comendo e encosto a janela entreaberta. Um pingo molha minha mão.

Pelo reflexo da vidraça os assisto no quarto. A imagem da Santa Ceia me vem à cabeça. Todos se alimentando, tensos. Nem me perceberam roubar-lhes o ar frio da noite. Olhos baixos, lábios movendo-se, mãos tremendo. Corações acelerados.

Quatro olhos me observam sem parar. Oliver e Daniela. Finjo não percebê-los. Ele logo atrás, sentado no carpete, encostado na cama, e ela mais afastada, na ponta do colchão.

Parem de me olhar.

Ou a sensação que grita dentro de mim pede o contrário?

- O plano é o seguinte. – começa Victor, já em pé com Pooh ao seu lado e Lizzy aproximando-se. – A russa vai ficar nesse quarto com o bebê. Vocês ficam nesse andar, o mais próximo possível. Nos quartos ao lado, de preferência. – se dirige a Oliver, Daniela, Pablo, Conrado e a mim.

- E esse cachorro? – Conrado faz cara de nojo para Thor. – Vou ter que aguentar esse bicho latindo a noite toda?

Olhando de lado, vejo Pablo travando o maxilar enquanto uma veia sobe em sua testa. Thor rosna baixo.

- Se não quiser dormir com ele, é só sair e dormir lá fora com eles. Eu posso te ajudar a descer pela janela.

Conrado se cala ao convite de Pooh.

- Nós vamos ficar no andar de baixo com as armas. – continua Victor. – Temos pouca munição, mas temos. Se por ventura eles conseguirem entrar, vocês terão tempo de correr. Evitem usar o elevador, e se o usarem, não desçam até o térreo, senão vão dar de cara com aquelas coisas no saguão.

Em fileira indiana saem um a um. Victor, LC, Carla, Pooh e por último, Lizzy. Antes de ir me lança um último olhar. Sem usar palavras desejamos uma boa noite. Em vão.

- Bom, vou ficar no quarto ao lado. – Conrado levanta de uma cadeira e abre mais o paletó, deixando o peito à mostra. – Se precisarem de algo, não me chamem.

E sai.

- Cara idiota, meu! – elogia Oliver.

- Você se acostuma. – respondo. – É só não deixá-lo te irritar.

Mantenho os olhos na porta, ouvindo o som dos passos do cretino distanciando-se. Uma porta bate ao lado.

- Uma missão impossível, concorda?

Pablo tenta brincar, mas é clara sua antipatia com o outro. Thor não se afasta por um instante.

- Vamos nessa, amigão. – e vai em direção à porta. – Se precisarem de algo, podem gritar, valeu?

Antes de sair nos lança uma piscadela simpática, especialmente para Yulia, que sorri, sem entender. Thor o segue fielmente.

- Também vou dormir. – aviso, num bocejo e uma espreguiçada. – Aposto que não estou menos cansado do que vocês.

Daniela e Oliver se levantam ao mesmo tempo como se tivessem combinado, enquanto Yulia os assiste, calada.

- Tiago, posso...?

Nem deixo Daniela terminar.

- Dani, não. Tô afim de ficar sozinho.

Nem fico pra ver sua expressão de desapontamento.

- Boa noite, cara.

Lanço um último olhar pra responder a Oliver com um aceno. Assim que entro no quarto que escolhi, vejo Daniela passando como um foguete. Do outro lado, os passos calmos do garoto. Yulia e eu fechamos as portas ao mesmo tempo.

Caído na confortável e espaçosa cama, mantenho os olhos pregados na mancha de sangue na parede do banheiro ao fundo. Uma mão caída, imóvel. Nos livraremos dos corpos no dia seguinte. Merecemos descansar um pouco, não?

Num estalo, lembro-me de algo. O conteúdo em meu bolso.

Pegando-o, o desdobro e observo.

Como essa foto foi parar lá?

Enquanto minhas pálpebras vão tornando-se a cada segundo mais pesadas, a imagem na foto vira um borrão. Os berros da multidão vão deixando meus tímpanos em paz.



♦ ♦ ♦



Definitivamente Luciano estava certo. O Halley que entendia tudo daquilo não conseguiu. Por que eu conseguiria?


Nunca tive contato com esse tipo de aparelhagem em minha vida. Fios vermelhos, azuis, pretos, pratas, descascados, brilhantes, grossos, duplos. Botões de vários tamanhos, cores e formatos.


- Eu disse.


Apenas mantenho os olhos fixos no monstro mecânico a minha frente, sem olhar em direção ao comentário do porteiro. Ele está certo. Disse mesmo. Minha teimosia sempre prevalece.


Os longos minutos em que tento ao menos entender no que estou mexendo são ladeados pelos lamentos vindos da janela. Alguns andares abaixo o mar de canibais clama por morte. A nossa.


- Há quantos dias esse Halley se foi mesmo?


- Três. – responde Luciano, enquanto olha pela vidraça escancarada. – Você já deve tê-lo ouvido na rádio. Todos o conheciam.


Não eu. Nunca fui de atentar-me às notícias, ainda mais regionais. “Essa cidadezinha do interior que exploda”, costumava dizer. Meu sonho era ir pra Capital, onde teria mais chances de crescimento profissional. Mal sabia eu que logo estaria lá. Não da maneira como desejava, mas estaria.


- ...interior.


Hã? De onde veio isso?


Olho para Luciano, esperando que ele possa completar a palavra com uma frase, mas sua expressão é de tanta surpresa quanto a minha. De orelha em pé, não nos movemos quando o chiado quase inaudível escapa de uma das caixas de som, a menor.


- ...nhora Tzao... conseguiu... Bzzzzzz... Küsen... Bzzzzzz...


Uma fila desfragmentada de palavras ao vento faz-me ficar mais confuso. O que são essas palavras sem sentido?


O chiado morre.


- Você entendeu alguma coisa?


O garoto responde com um aceno negativo. Estamos quites.


Após mais algumas tentativas de muda fio pra cá, encaixa lá, desisto. O milagre de algum grupo de resgate captar qualquer contato e vir me salvar não vai acontecer.



♦ ♦ ♦



O calor do sol queimando minha pele nem incomoda. Antigamente isso seria motivo para me dar dor de cabeça. Hoje nem me dou ao luxo de reclamar de qualquer desconforto. Mantendo-me vivo está ótimo.

Na beirada do terraço, debruço o braço direito sobre a perna, encurvado. As formigas infectadas lá embaixo não param de se mexer. Frenéticas. Sedentas.

Olhando ao redor, consigo avistar praticamente a cidade inteira. Não é muito grande. Deve ter uns setenta e cinco mil habitantes. Noventa e nove vírgula nove por cento prontos pra me comer vivo. Não se vê uma alma viva ao longe. Nada. Um vulto sequer. Só a amplitude do nada.

Jaboticabal está morta.



♦ ♦ ♦



No apertado corredor, formamos um círculo. O padre insistiu.

- Que Deus nos proteja enquanto esse guerreiro da bondade busca socorro. Ilumine-o em sua jornada e impeça que os soldados do inferno o derrubem. Vamos orar.

O tal guerreiro da bondade sou eu.

Enquanto uma oração é murmurada por um longo minuto, ergo os olhos e os observo. Todos de olhos fechados, rezando com toda força de sua fé. Realmente acreditam que a ajuda virá. Assim como acreditam que Halley ainda voltará.

“Ele vai voltar com ajuda, tenho fé em Deus que vai.”

Pobres coitados.

Assim que terminamos, o velho me benze. As mulheres olham-me com olhos esperançosos. Brilhantes. Luciano me estende a mão.

- Boa sorte, amigo.

- Valeu! - retribuo, com a cabeça longe dali. – Voltarei com ajuda o mais rápido possível.

Após uma despedida calada, vou em direção ao elevador. Parece uma caminhada eterna. Pesadamente leve. Uma culpa agradável.

Abro a porta de madeira e, em seguida, a de ferro. Olhando-os através do vidro, aperto o botão para o segundo andar, onde poderei sair pela janela dos fundos com mais segurança. Escalarei a escada de emergência enferrujada e seguirei pelos telhados quentes do comércio ao redor.

Quando o elevador começa a descer, me torno para eles o mesmo que Halley.

Alguém que não voltará mais.

No meu caso, por opção.



♦ ♦ ♦



Um som abafado me desperta.

Sobressaltado na cama, olho em direção ao banheiro. O corpo permanece imóvel. Menos mal.

Olhando em volta, vejo o papel ainda dobrado e amassado em minha mão esquerda. Desgrudo-o do suor em minha pele e deposito-o novamente em meu bolso. Caído no lençol está a injeção com o líquido escuro. Um pouco escapou e manchou o pano claro e fino. Coloco-o junto com a foto.

Uma conversa baixa chama minha atenção. Vem do corredor.

Sonolento, caminho em direção à porta. Mantenho a luz apagada enquanto abro a porta lentamente. Ninguém no corredor.

A fresta de luz que passa por baixo da porta do quarto de Yulia é o de menos. O mais estranho é a agitação das sombras que fogem pela passagem. Há alguém com a ruiva.

Olhando ao redor, vejo o silêncio imóvel a espreita. Com passos furtivos vou até a porta, postando-me logo ao lado.

Mantendo-me invisível à atenção de qualquer um por perto, presto atenção na conversa. Não entendo bulhufas.

Há alguém conversando com a ruiva.

Em russo.

Uma voz masculina. Fala baixo demais, sendo impossível distinguir quem seja, diferente da garota, que parece bem alterada.

Quem será? Por que omitiu saber falar russo? Por quê?

Abaixando-me, olho pela fechadura e procuro o tal mentiroso.

 
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31 mordidas:

Dane disse...

HAUHAUUAAHUAH oq é um dia esperando maior tempão xD *-* saudaaade de ler isso... kkkkkk tenho dó do tiago.. sinceramente xD e... alguém soque o conrrado ò.ó

16 de abril de 2009 às 23:21
Samir disse...

kkkkkk
Não dá pra xingar! tá muito bom...
Só ta faltando o Tiago Mostrar que gosta da Daniela... to sentindo falta dela sorrindo!

17 de abril de 2009 às 02:40
Anônimo disse...

Aff!!! Finalmente o bebê tem um nome!!!! Agora é só esperar pra ver o que mais vai acontecer!!!
Concordo os dois comentários acima: o Conrado precisa de uma surra, e o Tiago deixar de ser durão e dizer que gosta da Daniela!!!

17 de abril de 2009 às 21:22
Tiago Toy disse...

Galera! Vim direto do trampo pra cá, mas o lab da facul onde uso o PC vai fechar daqui a pouco (hoje é sábado). Terminarei o capítulo 18 segunda (e provavelmente terça também, devido a extensão do novo capítulo).

Keep postin'.

18 de abril de 2009 às 20:56
Tenista de Violino disse...

nuss, até tremi quando vi q o capitulo 18 tava no ar


muito bom, gostei pra caramba ^^

20 de abril de 2009 às 04:33
nicoals disse...

ótimo, adorei

20 de abril de 2009 às 14:53
U3 disse...

Sinceramente, TM está ficando melhor a cada momento que se passa.
Os personagens estão muito bem trabalhados e estão evoluindo...
Só não gostei muito do Oliver...
A entrada dele na trama foi meio forçado...
Mas tá tranquilo...
Tiago, não pare de escrever e nem que seja uma vez por mes, mas que vc atualize o Blog...
Blz!

20 de abril de 2009 às 17:07
KGeo disse...

vc ganhou um selo.

http://mundostreze.blogspot.com/

21 de abril de 2009 às 06:19
Samir disse...

Caramba!
Ta bom mesmo!
ta valendo a pena esperar!
Toy...Vc podia colocar uma barra delimitando o fim de cada postagem picada pra gente? ia facilitar um pouco e a medida que posta + retira a barra antiga...
Parei de dar palpite!
Parabens kra ta D+!!!

1 de maio de 2009 às 01:12
Taty disse...

muito bom adorei!!!!!

2 de maio de 2009 às 22:39
Taty disse...

Eu não estou gostando muito da tristeza da Dani...
Senti um clima entre o Tiago e o Oliver, será q vai rolar alguma coisa...tadinha da Dani!!!
do mais ta td ótimo.

2 de maio de 2009 às 22:41
Everton Roberto disse...

HAHA
Eu também senti um clima entre o Tiago e o Oliver
Até comentei na cmm no Orkut do conto/historia
AUhauHAUha

3 de maio de 2009 às 02:58
Anônimo disse...

kara no final ele vai abandonar ela mesmo pra protege-la da Umbrella corp.

3 de maio de 2009 às 22:44
Anônimo disse...

Tadinha da Dani mesmo!!! Ela tem que voltar a ser a moçoila alegre de antes!!

**kara no final ele vai abandonar ela mesmo pra protege-la da Umbrella corp.**

Umbrella corp. hahahahahaha!!!!!!!!
Tomara que não! Torço pela Dani e o Tiago!

5 de maio de 2009 às 01:08
Raquel Rocha disse...

Thiagoooooo!!! Estou AMANDO a históriaaa! Eu sei q vc não gosta da Dani, mas POR FAVOR, faz ela voltar a ser engraçadaaa...E esperta! Aquela cena do Super Mercado (no começo) foi uma das melhorees! Ai como eu to curiosa pra saber o que vai aconteceer!! E como eu ODEIO o Conradooo...Aquele RETARDADO! Urght, mata ele logoooo, da forma mais dolorida possíveel! Eu amo a Yulia, e olha que ela neem falaaaa...Huahuahauhah...Beijoos Thiago! Te vejo amanhã!

15 de maio de 2009 às 03:47
Tayná Tavares disse...

Nossa, nem acreditei quando vi que tinha atualização.. muito bom, muito bom, e eu acho que o Oliver sabe de muita coisa..

20 de maio de 2009 às 07:06
Morganinha disse...

"Dani e Tiago LOVE" eu imploro, Toy ey sei que vc nao gosta da Dani mais please, Dani e Tiago LOVE, só vou fazer mais um pedido, quando for matar o Conrado, nada de zumbis comendo ele ok.Quero algo que possa doer mais, por exemplo tentando fugir de zumbis dentro de uma casa abandonada, e bam cai uma parte do teto na perna dele, ele ainda tenta sobreviver se arrastando lentamente até a porta que está proximo da escada que ele pretendia subir, gemendo de dor, mas sem pensar em desistir Conrado se segura na porta para abri-la quando... ai vc decidi o que vem depoi, ou ele entra dentro do quarto escuro, e sente algo pingando nele e depois e mordido por um zumbi dentro do quarto. Ou tambem pode cair um monte de coisa em cima dele que estava dentro do quartinho fazendo ele ficar impossibilitado de vez e os zumbis créu nele. Sei lá ai e com vc,mais tem que ser algo sofrivel.
Bjao e continue escrevendo assim perfeitamente, e nao demora pra postar pq do sabugo vou começar a roer os dedos.

22 de maio de 2009 às 00:05
Tiago Toy disse...

E quem disse que o Conrado vai morrer?

Ah...

E quem disse que ele não vai morrer?

Love? Tiago e Dani? Será?
Hummm, vamos ver!
Mas... Love mesmo? Tem certeza?
Será que ela merece?
Será que ele pode amar alguém?

Será... Será?

22 de maio de 2009 às 20:48
Anônimo disse...

Bobagem! *Qualquer um merece ser amado. E qualquer um é capaz de amar!*

Menos o Conrado! Ele só merece morrer mesmo! E logo!

Adorei o capítulo! Vê se não demora para postar a continuação!

22 de maio de 2009 às 23:46
Dane disse...

adorei.. como sempre maninho xD

23 de maio de 2009 às 00:11
Samir disse...

Sei não mais acho que o conrado faz falta mesmo assim!
eu também não gosto dele mas a obra prescisa dele galera!
mesmo no inferno que ta pegando se não existir um personagem que desequilibre os outros sériamente fica dificil ter enredo...
Tá muito bom mais continuo achando que podia ter mais involvimento entre o tiago e a dani...
ela sabe se virar muito bem mas se se envolvessem seria algo que o tiago teria a perder...
poderia ficar até interessante se ele começar a agir como superprotetor em relação a ela isso desgastaria a relação faria com que eles tivessem brigas interessantes...
mas o gênio criativo é sem sombra de duvidas o Toy então vamos esperar o desenrolar da trama que está cada vez melhor!
Toy agora uma dúvida:
Vai ter versão impressa?

27 de maio de 2009 às 21:51
Tiago Toy disse...

Espero que sim!


*__*

27 de maio de 2009 às 23:05
Unknown disse...

Sabe o que seria algo bom?o conrado desse um motivo de verdade para matarem ele



Talvez se ele tentasse estuprar a russa.... (o que eu não duvido muito ¬/_\¬)

5 de junho de 2009 às 18:12
Marcela disse...

Toy volta a escrever um pouco como se fosse um diario...
vc é muito bom nisso foi o mais interessante essa parte do começo...
o grupo ta meio grande acho que podia reduzir pro tiago e a dani de novo esses soldados de eleite tão quebrando um pouco a agonia que dava antes quando eu lia os capitulos que era só o Tiago ou ele e a Dani...
dá mais medo com pouca gente...
parece que sobreviver era mais dificilsem essa tropa de elite!
Posta + PLZ!!!

9 de junho de 2009 às 16:00
Samir disse...

E ai Toy eu vi na comu o comentario sobre a publicação vc ja criou a conta pra gente ajudar?
to louco pra comprar o livro TM

9 de junho de 2009 às 16:37
Anônimo disse...

que voz é essa!!!!
Toy posta mais!
to tão viciado que to entrando no blog antes do trabalho e quando volto pra procurar novidades!
aki em casa são tres viciados em TM já!
parabéns

17 de junho de 2009 às 01:32
Luiz Paulo disse...

o Tiago da estória vai virar o Nemesis uahsuashuashuahsuashahsuhas


Zuera =P

16 de julho de 2009 às 18:58
ErickTavarez disse...

Ótimo capitulo!
Daniela apaixonada? aff

Cara, parece que voce é meio egocentrico, não vai colocando muita caracteristica no Thiago não (que no caso, seria você).

Quer dizer, voce que sabe.

17 de julho de 2009 às 03:56
rick disse...

Só uma coisa não gostei na história, os zumbis correrem. E tô sentindo falta de morte no grupo do Tiago também, isso tá tirando um pouco do terror hehe xD~

20 de julho de 2009 às 13:06
Anônimo disse...

Cadê a continuação? Muito bom, poste o resto, por favor.

11 de novembro de 2012 às 23:58
Tiago Toy disse...

Oi, Anônimo!

Ainda há alguns capítulos disponíveis aqui no blog, até o 23º. Depois disso, só no livro.

Você o encontra em diversas grandes livrarias, como Cultura, Saraiva, FNAC, Martins Fontes, ou como E-book na Apple Store, Saraiva, Gato Sabido.

Abração e valeu!

12 de novembro de 2012 às 01:57

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