Capítulo 20 - Tensão!


Quando passamos correndo pela cozinha, urgentes, onde Carla, Lizzy e Dani estão conversando distraídas, atraímos sua curiosidade num repente.

- O que foi? Eles entraram aqui? – pergunta Daniela, levantando num pulo, com os olhos arregalados.

- Não. É outra coisa. – é a única resposta que tenho tempo de pensar.

Não que esteja muito preocupado com Conrado, mas é o tipo de situação que nos envolve num misto de adrenalina e choque. E se Yulia não for mais rápida do que ele?

Subimos correndo os degraus que levam ao terceiro andar e chegamos ao local onde a russa passou, sorrateira como um felino.

- Por aqui. – é o que digo no exato momento em que o berro masculino ecoa pelo corredor.

Alarmados, disparamos até o quarto de onde veio o grito, Pooh na frente com sua arma pronta para disparar. O que deu em Yulia? É o que vamos descobrir agora.

Olhando pela porta escancarada, vemos o quarto vazio. Porém, a silhueta que emana da luz do banheiro pelo estreito corredor adiante entrega o contrário. Calados, ouvimos a garota falando algo em sua língua. Parece bastante alterada.

- Você é louca! – pragueja Conrado. Não sinto tanto alívio quanto deveria ao ouvir sua voz. Sinal de que ainda está vivo. De certa forma, que pena.

- O que tá acontecendo aqui? – Victor entra sem convite no aposento.

Seguindo-o, LC, Pooh e eu vemos Yulia parada no meio do banheiro. De mãos vazias. E o garfo? Vasculhando com uma olhada rápida, encontro-o. Cravado na têmpora direita de um rapaz caído aos seus pés. Ensanguentado, tanto nas roupas quanto no ferimento recém-adquirido em sua cabeça. A poça rubra se alastra pelo piso branco do local. Conrado está caído, sentado, no Box, sob o chuveiro ligado que teima-lhe em cair quente, atacando-nos com seu vapor reconfortante. Uma cena curiosa. Que porra é essa?

- O que aconteceu? – pergunta Victor mais uma vez. Demonstra estar tão por dentro do assunto quanto eu.

- Essa doida entrou aqui...

- Ei, larga a arma! – Pooh engatilha a sua própria e mira o quarentão que levanta devagar, exibindo uma pistola, antes escondido sob a coxa.

- Relaxa, ursinho. – debocha ele. – Se eu fosse usá-la, já o teria feito nesse filho da puta aí.

E aponta o infectado abatido.

- Esse infeliz entrou aqui tão silencioso que nem tive tempo de perceber. Quando atirei, essa porra não funcionou. – e joga a pistola aos pés de Victor, que a pega, sem tirar os olhos de Yulia.

A ruiva permanece com os olhos fixos em Conrado. Por que parece estar tão irritada?

- Não é pra menos que não funcionou. – Victor destrava a arma num clique. – Conhece trava de segurança?

Conrado nem se dá ao trabalho de responder. Acho que o susto lhe deixou sem piadas para esse momento. Tudo que faz é erguer as sobrancelhas e abrir levemente os lábios. Mas os fecha e olha pra russa.

- Valeu, russa. – que milagre! Esse cara sabe agradecer? Agora sim que a chuva não para mais.

Yulia retrai o cenho e despeja algumas palavras incompreensíveis, pelo menos pra todos no banheiro, exceto a mesma. Realmente não parece nada feliz. O que estará dizendo?

- O que quer que eu faça? Quer uma medalha? Já agradeci, caramba. – Conrado se levanta sem pudor algum com sua nudez.

Yulia solta mais uma palavra antes de se virar e sair.

- Syn suki.

Conrado a fuzila com os olhos. Depois se enrola na toalha mais próxima e sai do banheiro como se estivesse sozinho.

- Qual a arma pra atirar e qual é pra se divertir agora, hein? – caçoa LC, lembrando do comentário de Conrado anteriormente.

Ele permanece calado após um baixo “humpf”, abrindo o closet e procurando roupas.

Seguindo o trio quarto afora, não consigo deixar de notar as estranhas cicatrizes no lado esquerdo do corpo do piadista. Parecem marcas de lâminas, algumas esbranquiçadas pelo tempo, e outras mais recentes. São várias. Sou pego em flagrante olhando-as.

- Gostou? – pergunta ele. E se cobre com uma camisa social branca. Saio logo em seguida.



♦ ♦ ♦



As garotas nos olham intrigadas na cozinha.

- Parece que ela viu esse maluco entrando no quarto do Conrado e evitou que ele fosse atacado. – explica LC.

- Ela não podia ter esperado o infeliz atacar, pra depois matar? – indaga Carla, obviamente brincando. Ou não? – Seriam dois coelhos com uma cajadada só.

Alguns riem, mas risos trêmulos. Claro que estão preocupados, pois...

- Como ele entrou aqui? – é Lizzy quem faz a pergunta principal.

- Não fazemos ideia. – LC responde.

- Devia já estar aqui em algum dos quartos, preso, sei lá. – dou minha opinião. – Pelo menos todas as entradas estão barradas.

- Todas que nós conhecemos. – retruca Victor.

- Acha que devemos dar outra vasculhada? – pergunta LC.

- Só temos a ganhar com isso. – responde o maior. – Ou tem algum outro compromisso mais importante?

- E o Conrado? Como está? – Dani pergunta. – Não que eu me importe. – explica ela, sob os olhares curiosos de quase todos.

- Continua idiota como antes. Estava bem assustado quando o encontramos. – explica Victor. – Com motivo. Se não fosse a russa, teria virado comida.

- Ele é cheio de cicatrizes. – solto sem pensar.

- Hã? – Lizzy parece não ter escutado o que eu disse.

- Conrado. Tem várias cicatrizes no corpo.

- Tem alguma coisa contra cicatrizes? – ameaça Pooh.

- Nada contra, nem a favor. – levo na esportiva. Não esqueci que ele também é um porta-cicatrizes ambulante. – Só achei estranho.

- Eu não. Deve ter se metido em muitas brigas. Não é o tipo de cara que você quer como amigo. E sim o tipo que você enche de porrada. – Carla, próxima a porta, é mais direta em sua opinião. Acredito que seja a mesma de todos. E não só na cozinha.

Meu sorriso em resposta ao comentário desaparece no mesmo instante em que a garrafa é arrebentada contra a cabeça da mulata. Os cacos do vidro esverdeado se espalham pela cozinha.

- Filho da pu...

Carla não consegue terminar o elogio devido ao soco que Conrado desfere em suas costas, fazendo-a cair de joelhos. O sangue escorre de sua nuca até o rosto desnorteado e mancha o piso.

- Porrada desse jeito, morena? – pergunta Conrado. Parece fora de si.

Todos na cozinha se levantam assustados com o ataque repentino. LC vai pra cima do covarde, mas para no mesmo momento em que a pistola é mirada diretamente para sua testa.

- Não vai querer ser meu amigo também, loirinho?

Todos os presentes na cozinha, exceto Yulia que está em seu quarto cuidando de Yerik, parecem parar de respirar. Olhando de soslaio percebo Pooh com sua arma empunhada.

- Não vai querer brincar com essa aqui, parceiro! – orienta.

LC permanece imóvel olhando diretamente para o pequeno orifício na ponta da pistola. Evita ao máximo qualquer movimento.

Carla se apoia com a mão esquerda no chão enquanto a direita pressiona o corte em sua nuca, que dá passagem para o grosso fio de sangue descendo por sua pele, fazendo um caminho vertiginoso pelo braço travado.

- Pooh... LC... – diz ela, com certa dificuldade. – Não foi nada.

- Como não foi nada, Carla? – questiona o loiro, indignado.

- Rapaz, rapaz... – Conrado continua com os olhos arregalados de ódio.

- Já disse, não foi nada. – e se levanta devagar. – Ivan, abaixa a arma.

O grandalhão não faz menção alguma de obedecer.

- Ele só tá alterado pelo que aconteceu. Não foi nada! Abaixa a arma. – enquanto dá a desculpa pelo ataque, a mulata sequer olha seu agressor. E sussurra: - Abaixa.

Pooh exita por um breve momento, mas acaba cedendo, cautelosamente. Conrado se retira da cozinha tão rápido quanto surgiu. As respirações voltam.

- Gata, ‘cê tá bem? – LC a apoia pelo braço, preocupado.

- Relaxa, Luiz. Já passei por piores que essa, e você sabe. Aqui não é lugar pra um tiroteio. – Carla vai até a pia e, abrindo a torneira, coloca a cabeça sob a água fria. O chiado que emite nos faz sentir sua dor. – Ele vai pagar.

Oliver, Dani e eu nos olhamos assustados.



♦ ♦ ♦



Sinto o suor encharcando as costas de minha camisa enquanto corro desesperado pela rua levemente inclinada, fugindo do bando que me cercou. Esses malditos surgem como insetos, dos buracos mais improváveis. Se não tivessem aparecido eu poderia estar na estrada, quem sabe rumo à salvação. Não tive escolha a não ser voltar. Terei outra chance?

Na quebra de outra esquina sou surpreendido por mais deles. Droga! Tô cercado.

Devem ter, no mínimo, uns vinte deles atrás de mim agora. Será que sou suficiente pra encher a barriga de todos? Tiago, não é hora pra piadinhas infames. É hora de escalar aquele muro, e rápido.

Atravessando a rua adiante, miro a parede mais apropriada para me refugiar. É baixa o bastante para que eu consiga subir num impulso e alta o suficiente para evitar que eles me alcancem. Da sarjeta, bato um pé na calçada e, com o outro, impulsiono-me do muro pra cima, agarrando a borda e subindo habilmente. Subi tão desesperado que não consegui me equilibrar e acabei caindo direto do outro lado, de costas no chão. Que dor!

Os grunhidos ferozes me fazem levantar rápido, mesmo enquanto minha visão embaça devido a pancada. Cambaleio pelos corredores envoltos em sombras adiante e escondo-me na esquina que leva aos fundos do local.

Parando, olho em volta. Ninguém. O único som são os gritos dos infelizes do lado de fora e minha respiração descompassada saindo em jorros pelas narinas e boca, simultaneamente.

Mais calmo, observo o lugar. Trata-se de uma escola. Uma pré-escola. Na verdade, é a mesma pré-escola em que estudei quando criança. Passou muito tempo, mas lembro-me de alguns momentos como se fosse ontem. Minha infância foi bem feliz, pelo pouquíssimo que me lembro. Minha juventude? Estou começando a duvidar que passarei dela.

Aguardo mais alguns segundos antes de me aventurar pelo lugar. Qualquer cuidado é pouco. Não duvidaria se um desses dementes pulasse do telhado. Minha sorte é eles não escalarem paredes. Ou talvez não saibam que podem fazê-lo. Se for isso, prefiro que continuem com essa habilidade esquecida. Já basta correrem como demônios.

Não ouvindo qualquer barulho – do lado de dentro – resolvo arriscar. Estou com sede demais pra me dar ao luxo de não beber água por medo.

Cautelosamente caminho até metade do caminho quando, por culpa da falta de iluminação, tropeço em uma pilha de ripas de madeira. O barulho ecoa pelo corredor, travando minhas pernas e estalando meus olhos. É tudo o que preciso agora. Um alarme que diz “Estou aqui. Venham me matar”. Imóvel, aguardo. Nada. Talvez não haja ninguém aqui, de fato.

Por precaução, pego uma das ripas, bem resistente por sinal. Deve ter por volta de sessenta centímetros. Não é a melhor arma do mundo, mas já vale de alguma coisa.

Continuando o trajeto posterior, dirijo-me até o bebedouro d’água adiante. Minha garganta implora por líquido. Já devo estar com dois por cento de desidratação. Sinto como se fosse cem.

Sedento, caio de boca no jorro que sai da máquina assim que pressiono firmemente o botão. Ohhh, que delícia! Geladinha. Nunca gostei de água muito gelada, é como se não matasse a sede. Hoje a sensação é outra. É revigorante.

Sinto-me tão entregue ao momento que quase deixo passar despercebido o som que ecoa baixo, mas bem audível. Fixando o olhar no fim do corredor, tento enxergar algo além da escuridão. Atento. Noto uma sombra mais escura destacando-se das sombras. Meus olhos quase saltam das órbitas quando ele desponta na claridade. Correndo, frenético. Assassino.

Não deve ter mais de dez anos de idade. É branco, de uma pele de porcelana, com os cabelos negros sedosos e brilhantes. Porém, a inocência que deveria estar em seu olhar foi tomada por outra característica. Algo mais diabólico. Mais sanguinário. Deve ser devido à mordida em seu braço esquerdo, esticado em minha direção.

Erguendo a ripa, quase não acredito no que terei que fazer. Mas é assim agora. Ele ou eu.

No momento em que se aproxima pronto para me atacar, acredito que nem tenha sentido a madeira partindo seu crânio ao meio, liberando uma boa quantidade de sangue. Sinto meus músculos rígidos tremerem ao impacto com a cabeça da criança. Seu frágil corpo cambaleia em direção à parede ao meu lado e cai de cara na mesma, rolando pro chão logo em seguida. Esse foi fácil. Em termos físicos. Mentalmente? Vou me acostumar.

A ripa é forte o bastante para permanecer intacta. Ignorando o corpo aos meus pés, mantenho-a erguida, pronta para mais um que tente a sorte. Acho que passam-se uns dois minutos até que me dou conta de que não há mais ninguém a vir. Segurando-a firme, termino de beber minha água, até sentir-me saciado.

A correria a que os filhos da mãe lá fora – que por sinal continuam berrando – me submeteram, não só me deixou com sede, mas também com muita fome. Deve ter alguma comida no refeitório dessa escola. Sem pressa, mas de orelhas erguidas, vou até lá, lembrando-me muito bem do caminho.

Mais nenhuma criança zumbi aparece, para minha sorte. Não seria nada agradável decepar mais um crânio tão pequeno, tão frágil, tão... Cara, eu acabei de matar uma criança!

Sento-me no banco de madeira do refeitório e respiro fundo. Não. Não foi errado. Era ele ou eu. Mas... Uma criança! Nem sabia o que estava fazendo, coitado.

Tiago, não é hora pra remorso. O que está feito, está feito. É como você disse. Era ele ou você. É. Respira fundo. Não é assim que você vai sobreviver a isso.

Recompondo-me, vou até a cozinha, prestando atenção a qualquer possível ataque. A comida no panelão desperta minha curiosidade, até o cheiro de podre invadir meu nariz. Eca! Que desperdício.

Fuçando nos armários encontro um saco com pães, bem murchos, e um pacote de bolachas de água e sal. É tudo que preciso. Na geladeira, pego cinco saquinhos de algo amarelo que deve ser suco de soja, daqueles que distribuem para as crianças nessas escolas. Puxando uma cadeira, dou início ao banquete.

Assim que engulo o primeiro naco de pão, sinto minhas mãos tremerem menos. A fome sempre me afetou demais. Não que já tenha sofrido disso, muito pelo contrário. Sempre me alimentei muito bem. Até demais, pra falar a verdade. Mas era só ficar sem comer por mais tempo do que de costume que já sentia dor de cabeça, tremedeira. Enfim... Vamos comer.

O que foi isso?

Olhando ao redor, analiso cada canto do lugar. Silêncio. Juro que ouvi um som. Algo parecido com... Uma criança? Outra?

Deixo a metade do segundo pão que estava atacando sobre a mesa e ergo a ripa novamente, postando-me de pé.

- Ei.

É tudo que consigo dizer. O medo me faz engolir em seco.

E isso agora? Um choro? E um shh logo em seguida? Tem algo errado aqui.

Seguindo o som – pelo menos de onde acho que veio – entro novamente na cozinha e olho ao redor. Nada fora do normal. Só as manchas de sangue no chão, derivadas do possível ataque que as merendeiras e crianças sofreram quando tudo começou.

Algo me chama atenção. A porta de um armário entreaberta. Da estreita fresta consigo enxergar um brilho diferente. Brilho de... Olhos?

Receoso, mas decidido, vou até a porta e, num movimento brusco, abro-a, pronto para arrebentar mais um que seja besta o bastante para investir contra mim.



♦ ♦ ♦



- Ti, corre! – Oliver me chama assim que volto do banheiro, apontando em direção a TV no alto. – Mais notícias.

Vou até a mesa mais próxima e me encosto, sem um pingo de vontade de confirmar o que já sei. É o fim. A esperança é a última que morre? Prefiro que seja eu.

Carla está sentada com LC olhando calmamente o televisor. Nem parece que há alguns minutos teve a cabeça usada como “quebrador de garrafas de champagne”. LC lança olhares preocupados à mulata de poucos em poucos segundos, sentado pouco atrás.

Lizzy, Pooh e Victor estão de pé em um dos cantos do restaurante, próximos a uma janela, provavelmente assistindo ao caos que segue do lado de fora. Um bando de humanos aparentemente endemonizados em meio a uma chuva que não para por nada. Quer cena mais... mais... Enfim!

Dani está sentada no centro do recinto, comendo algo. Seu mau humor não parece ter ido embora, porém o apetite voltou, que bom. Antes mal humorada do que mal humorada e com fome. Não me olha nem por um mísero instante. Está muito estranha essa Daniela.

Pablo está abraçado às costas de uma cadeira, sentado, olhando fixamente para Yulia, que alimenta Yerik com leite que ela mesma preparou. Thor parece assistir à TV com a cabeça apoiada na coxa de seu dono, com uma das orelhas levemente caída. Será se entende o que está acontecendo? Se não, não perde nada. É só saber correr na hora certa que tá tudo certo.

Yulia não dá brecha alguma para qualquer um que tente se aproximar. Está muito, como posso dizer?, acuada. Depois do incidente no banheiro voltou a se portar como no início. Retraída. Calada. Não que eu entenda qualquer coisa que ela diga quando abre a boca, mas os sorrisos fazem falta. Sinto em Pablo um desejo enquanto a observa. Estará querendo se aproximar? Tentar conversar? Ou outra coisa?

Será ele o tal poliglota misterioso? São tantas coisas que acontecem que acabo deixando outras de lado. Não que tenha me esquecido da noite passada. O pior é não poder contar pra ninguém, correndo o risco de acabar falando com a própria pessoa que ameaçou a russa. Mas... Terá ameaçado mesmo? Do ângulo nada privilegiado em que olhei daquela fechadura, e com tão pouca iluminação, posso ter “criado” uma expressão assustada no rosto da ruiva. Estariam só conversando? Essa dúvida não vai me deixar em paz até que descubra quem era naquele quarto com ela. Coisa boa não é. E tenho um bom pressentimento de que logo saberei do que se trata.

Disperso em meus pensamentos, sinto Oliver pegar em meu braço, chamando minha atenção. E olha pra TV.

- E a situação está se agravando cada hora que passa. – informa o repórter Joel Silveira, o mesmo de ontem. – O exército continua bloqueando as fronteiras da Capital, mas, se continuar como está, não suportarão por muito mais tempo.

A câmera mostra barreiras do exército formando um paredão impenetrável contra os cidadãos que gritam em protesto para sair. Famílias inteiras em carros, caminhonetes, e até mesmo a pé. Nada que sensibilize os soldados o suficiente para que qualquer um dê passagem às desesperadas pessoas. Pais gritam, crianças choram, outras olham ao redor assustadas. Parece uma feira. Mal sabem eles que o alimento, nesse caso, são os próprios.

- O governo ordenou que a força armada mantenha a barreira até que saibam o que fazer. Não querem causar tumulto nos estados vizinhos sem motivo. Disseram que já estão normalizando a situação em São Paulo e que logo estará tudo resolvido.

- Mentirosos! – pragueja Daniela, com olhos cravados na tela.

- Como se fossem sustentar essa mentira por muito tempo. – digo, mais para mim mesmo.

A reportagem mostra um grupo de cinco homens investindo contra os soldados, que logo em seguida metralham pro alto, afugentando-os. Mulheres e crianças gritam sob as luzes dos holofotes, como uma peça demoníaca sendo apresentada para todo o Brasil. Alguns berram, pedindo para se acalmarem e não tentarem desrespeitá-los novamente.

Joel parece estar no telhado de algum pequeno prédio nos arredores, pelo ângulo que a câmera focaliza todo o acontecido lá embaixo.

- Cara, eu não vou cobrir essa merda por mais tempo... – ele deixa escapar em rede nacional, enquanto a câmera tremula um bocado. Provavelmente os tiros passaram perto. – Coronel Peter nos contatou e informou que grupos de resgate serão enviados à capital, e que esse desespero todo não é necessário. É só questão de tempo até que todos estejam seguros.

Outra mentira. A única coisa que a LAQUARTZ quer é que todos se fodam. O que ganham com isso? É só o que não consigo entender.

- Todas as entradas de São Paulo estão bloqueadas. Todas mesmo, inclusive as aéreas. Todo e qualquer meio de transporte está terminantemente proibido de adentrar a cidade e os arredores. Querem evitar maiores transtornos assim que iniciarem os resgates.

A cada minuto parece que a multidão aumenta mais e mais. E a tensão cresce em igual proporção.

- Grandes galpões foram montados próximos à barreira. O que não sabemos é se seria pra uso dos próprios soldados ou se pretendem verificar qualquer rastro da tal doença nos populares. Improvável, pois até o momento não abriram exceção a qualquer um que seja, tampouco as crianças.

A câmera focaliza uma garotinha de, aparentemente, cinco anos, com o rosto sujo de terra e chorando nos braços da mãe desesperada. As duas rompendo em lágrimas. O homem logo atrás deve ser o pai, que as abraça, tentando protegê-las de algo que não faz nem ideia. Sua fisionomia é de um animal pronto para matar para proteger a prole. Boa sorte, amigo.

Yulia assiste à cena com olhos arregalados, fortemente agarrada a Yerik. O bebê dorme tranquilamente sem seus braços delicados, mas firmes. Todos parecem sensibilizados. Quem não estaria?

Por um breve momento vejo algo brilhar nos olhos de Daniela. Uma lágrima, talvez.

Perco-me na imagem da garotinha na TV. Está assustada, mas não chega nem perto do que sentirá quando eles chegarem.



♦ ♦ ♦



Meus olhos pulam quando encontro o casal de crianças escondido dentro do armário. O menino deve ter uns nove ou dez anos. Tem olhos pequenos, cabelo curto castanho escuro, e veste um uniforme escolar branco e azul. Marcas de fuligem cobrem suas bochechas e testa. Abraça a menor fortemente, tentando protegê-la. Seu cabelo é bem mais claro e ondulado, preso num rabo de cavalo um tanto bagunçado. Tem os mesmos olhos do garoto, e é tão branca quanto. Veste também o mesmo uniforme. Não devem nem ter tido tempo de ir pra casa quando eles atacaram a cidade. A hora do recreio deve ter sido de matar, literalmente.

- Vai embora! – grita o garoto, abraçando-a mais forte. A garotinha treme enquanto tenta reprimir o choro.

- Calma, moleque! – abaixo a ripa que permanecia no ar. Não é pra menos que continuaram assustados após me ver. – Não vou machucar vocês.

Olhando-o firme nos olhos, o garoto me encara. Se alguém – ou algo - se aproximar, esse pirralho vai ser burro o bastante pra revidar.

- Saiam daí. – viro e volto a me sentar, continuando minha refeição a pouco interrompida, não sem antes ir até a porta do refeitório e encostá-la, travando-a com uma cadeira contra a maçaneta. Toda precaução é pouca.

Enquanto devoro os pães com uma controlada ferocidade, vejo o garoto me olhar pelo canto da porta. Mantém as sobrancelhas cerradas. Quer mostrar que é valente. Valentia tem hora, garoto!

- Você não é um dos bichos? – a voz vem detrás do menino. Suave, trêmula, curiosa.

O menino nem olha a garotinha se aproximando por trás, esperando minha resposta com os olhos fixos.

- Não. Sou normal.

Os olhos do garoto tornam-se menos hostis, mas ainda atentos. Desconfiados.

- Você vai levar a gente pra mamãe? – pergunta ela, agora ao lado do menino.

- Hã? – encaro-a parando de mastigar.

Os dois me olham aflitos agora. Parecem suplicar algo com o olhar.

- O que aconteceu aqui? – pergunto. Como se já não soubesse.

Os dois se aproximam. A menina vem na frente, mas é impedida pelo braço do outro, que a protege com o corpo minúsculo. Permanecem de pé ao lado de uma mesa próxima, me olhando. O garoto fala.

- A gente tava na hora do recreio (o que eu disse?) e os homens loucos apareceram. Começaram a bater em todo mundo. Umas crianças caíram e não levantaram mais. Outras levantaram. Aí corriam pra cima das outras.

Enquanto ele narra o acontecido, a menina o olha assustada, como se estivesse presenciando novamente a cena.

- Peguei a mão da Pam e corremos pra cá. Não tinha quase ninguém comendo. Já estavam voltando pras salinhas. Só as merendeiras estavam na cozinha, olhando curiosas, sem sair. Quando entramos correndo, elas perguntaram, mas a gente tava chorando muito. Uma delas, a mais gorda, pegou a colher de pau quando viu um deles entrando atrás da gente e gritou pra ele parar, mas ele foi pra cima dela e... Parece que ele mordeu ela!

Os olhinhos da garota agora parecem brilhar. De medo.

- Quando eu vi sangue saindo do pescoço da gorda, e as outras gritando e correndo chamando a polícia, entramos pelos fundos e nos escondemos no armário. Ouvi uma barulheira muito grande. Gente gritando, correria, as cadeiras caindo. Aí depois de um tempo parou. Saímos do armário só de manhã, no dia seguinte.

- Os bichos tinham ido embora! – quase grita a menina. Outro shh saiu dos lábios do garoto, repreendendo-a.

- Fala baixo, Pâmela!

- Ai, Carlinhos, eles já foram!

- Tem um lá fora. – avisei, sem saco algum pra aguentar uma discussão infantil. Quando vi seus rostos amedrontados voltando-se a mim, acalmo-os. – Mas não vai entrar. Eu dei um... jeito nele.

Os dois se olham, ainda assustados. Sei que são crianças e tudo mais, mas nunca me senti a vontade com elas. Hoje não é diferente. Costumava dizer que eram monstros disfarçados, prontos para atacar. Uma brincadeira, óbvio. Mas, ainda assim, nunca me agradaram. Nunca me vi sendo pai um dia. Eu mesmo já me dava trabalho o suficiente pra ter que dividir minha própria atenção com outra pessoa.

- Vocês vão ficar aí me olhando? – me irrito, controlado. – Comam alguma coisa.

- Você vai levar a gente pra mamãe, moço? – pergunta Pâmela de novo.

- Pra começo de conversa, meu nome não é moço, é Tiago. E pra término, não.

As expressões se divergem. Enquanto ela me olha triste, ele me encara irado. Como se fosse minha obrigação ter que dar uma de babá nada perfeita em meio a uma cidade infestada de “bichos”. Já é muito difícil fugir sozinho, o que dizer com dois “pesos” tão frágeis.

- Papai é polícia. Ele pode ajudar.

A menção da palavra “polícia” pela pequenina boca da garota me chama atenção. Será que um cara com arma em casa e bem preparado pode ter alguma chance nesse inferno? Não custa nada tentar.

- Onde vocês moram? – pergunto, curioso.

- Perto da delegacia – a única na cidade.

Interessante. Não é longe. Na verdade, é até bem perto. Não sei como os dois não arriscaram ir sozinhos. Deviam estar com muito medo mesmo. Com razão.

- Bom, eu não quis dizer que não ia levá-los. – forço um sorriso torto, tentando parecer simpático. – Só pensei na segurança de vocês.

- A gente vai ficar seguro com a mamãe. – disse Carlinhos. – Leva a gente?

Pesando os prós e os contras, respiro e olho de um pro outro.

- Ok, eu levo.



♦ ♦ ♦



Perdi a noção do tempo em que essa chuva está caindo. Os minutos passam e a intensidade aumenta. Alguns dos grossos pingos batem contra a vidraça em colisões mudas. Outros, contra cada um dos infectados lá embaixo. Olhando através da janela, parece que a multidão multiplicou em comparação de quando chegamos ao hotel. Parecem menos agitados sob a chuva impiedosa. Vagam sem rumo, estranhando-se uns aos outros algumas vezes, procurando algo, o que percebo vendo, vez ou quando, alguns virando-se bruscamente, olhando adiante.

Lembro-me da cena no estacionamento da LAQUARTZ novamente. Todos eles parados, em transe. Aquilo sim foi estranho. Nunca os vi comportarem-se dessa forma. Nem em Jaboticabal. Não aconteceu do nada, disso tenho certeza. Só resta descobrir como e por que. Ter essa habilidade em mãos ajudaria um bocado. Mas não me passa uma fagulha de qualquer possibilidade de descobrir a razão para o acontecido.

- E aí, Ti?

Estava demorando.

- Oi. – respondo, sem olhar.

Oliver entra em “meu” quarto com a eterna vontade de puxar papo. E posso jurar que sei onde a conversa vai levar. Querem ver?

- Você viu que doido aquilo que o Conrado fez? A coitada da Carla tá com dor até agora.

- Eu estava lá. – ainda assisto a dança soturna a que os infectados estão entregues, sendo lavados pela água fria da chuva.

- Esse cara não vai durar muito depois do que fez. Aquelas coisas lá fora são o menor dos perigos agora pra ele. Se você visse a cara do Pooh quando o vi pela última vez. Do Luis então... Putz! Não estranhe se eles o pegarem e jogarem pela janela, no meio deles.

- Não estranharei.

- ...

Sinto-o caminhando pelo quarto. Não adianta mandá-lo sair, então nem vou gastar saliva á toa. Pelo silêncio que segue, percebo que sentou-se na cama. Permanecemos calados por breves e longos segundos, até...

- Tiago?

Suspiro.

- Oi.

- Desculpa bater na mesma tecla, mas... – não avisei?

- Cara, eu não sei o que aconteceu na lavanderia. – agora me viro e encaro-o. – Eu não sou uma daquelas coisas, pode ter certeza, senão já teria sido morto por algum de vocês ou matado vários de vocês.

- Mas...

- Eu disse que sofria de uma doença quando criança. Deve ser a mesma coisa. Não lembro bem como era pois era muito pequeno, mas pode ser isso. Fica tranquilo que não vou te morder. Se quiser contar pra eles, vai lá e conta! Só para de ficar falando sobre isso porque eu-não-sei!

- Eu não disse que vou contar. – me olha com uma das sobrancelhas erguida. – Prometi que ia guardar segredo, e vou cumprir. Mantenho minha palavra sempre. Só fico curioso, pois nunca vi nada parecido.

- Posso garantir que nunca viu nada parecido com nada do que está acontecendo. – volto-me à janela.

- Que doença era?

Viro-me novamente, fulminando-o com o olhar. Talvez se eu satisfizer sua curiosidade ele me deixe em paz.

- Era uma asma. Bom, meu pai dizia que era um tipo de asma, mais forte. Eu não consigo me lembrar bem, mas dizem que quando me atacava, parecia que eu ia morrer, saca? Me faltava muito ar e tinham outros... sintomas. – parando pra pensar, percebo que nunca me disseram, de fato, o que eu tinha. – Fui medicado por alguns anos e passou. Desde que me conheço por gente não tive outro ataque, pelo menos não que me lembre. Meu pai mantinha o tratamento, com medo da coisa voltar. Nunca me incomodou isso, sabe. Era só tomar a injeção sempre que necessário e pronto, estaria bem. Pode ser falta da medicação. Talvez a doença esteja voltando...

Ou nunca tenha ido, afinal.

- Estranho. Mas ok, não vou mais te amolar com esse assunto.

Não dá pra acreditar nesse moleque! Me enche, enche, enche, e quando eu decido falar, ele desiste. Paciência, viu...

- Que bom. – volto a observar a multidão na rua.

Analisando ao redor, a localização me pega de surpresa. Com tanta correria, nem percebi que o hotel fica na Avenida Paulista. Quando vinha a São Paulo passear, adorava vir a essa avenida. Acredito que era o foco da maioria dos visitantes na cidade. Não sei a que altura exatamente fica o hotel, mas pelo menos conheço o lugar.

- Algumas vezes penso que, enquanto estive desacordado na LAQUARTZ, aqueles malditos fizeram alguma coisa comigo.

- Alguma coisa o que?

- Sei lá. Se soubesse, ficaria menos preocupado. Ou mais. Acordei em uma maca, com algumas seringas ao meu lado. O cara que estava na sala ia me aplicar ou cortar, não sei. Não dei tempo pra que continuasse.

- Como foi parar na LAQUARTZ? – sua curiosidade por qualquer assunto que seja é irritante. Mas até que, no momento, está sendo bom conversar. Desabafar seria o termo mais apropriado.

- Longa história.

- Já ouvi isso antes. Tenho tempo.

Explico bem por cima, ainda com a testa contra a vidraça.

- Quando Dani, Ricardo e eu fugimos de Jaboticabal, fomos direto para as mãos daquela maldita.

- Quem?

- Abigail. – o nome me dá repulsa.

- Abigail...

- Era uma cobra que nos enganou para nos manter presos.

- Por quê?

- Quando descobrir, me conte. – ergo o polegar e estalo a língua. – Conseguimos escapar e viemos parar em São Paulo. Ficamos aqui, escondidos, por cerca de quase um mês. Nesse meio tempo pegaram o Ricardo, o que nos obrigou a descobrir onde ele estava. Acabamos chegando à LAQUARTZ. Por burrice, fomos cercados pela vagaba da Abigail. Nos desacordaram e, quando despertei, estava na tal maca.

- Putz!

- É, um putz bem grande! Um putz maior ainda para o que aconteceu depois. Infectaram o Ricardo em alguma experiência, só pode ser, o japa foi pra cima dos guardas, todos se transformaram nessas coisas e, graças ao Pooh e à Lizzy, conseguimos fugir, salvos. Se é que isso é estar a salvo.

- O que os dois estavam fazendo lá?

- Não faço ideia. Pelo pouco que entendi, estavam atrás de alguma amostra. Eles parecem ser “heróis”, mas não me enganam. Nenhum deles é flor que se cheira.

- O que acha que são?

- Ainda sem ideia.

- Hum... – e olha pros lados. – Eu disse que vi a Carla no aeroporto. Ela e o LC. Estavam conversando com uma turma estranha. Sou novo, mas não sou idiota. No momento em que os vi, percebi que tinha coisa ali. Achei ainda mais estranho quando negaram estar lá. Agora que você me contou sobre seus amigos, a coisa tá fedendo mais.

- Cara, o que menos me interessa é saber o que eles são. Tudo que quero é vazar daqui. Não aguento mais esse inferno. Em alguns momentos até tento me enganar, dizendo que me acostumei, mas é impossível se acostumar com mortes e sangue pra todo lado que se olha. Viver fugindo eternamente não é viver.

- Eu sei do que você tá falando...

- Não, não sabe.

- Sei que tem coisas mais importantes com que se preocupar, mas temos que nos precaver. Não é só porque eles são mais fortes e mais bem armados que vamos nos sentir protegidos. Quem garante que, na primeira oportunidade, eles não nos matam?

- Se fossem me matar, já o teriam feito. – digo, quase num sussurro.

- Tiago, e se eu dissesse que...

Que...?

- E se eu dissesse que meus pais podem nos tirar daqui?

Viro-me, encarando-o com desconfiança.

- Como assim?

- Eu sei que você disse que não há muita chance de sobreviver lá fora, mas estamos aqui, vivos. Meus pais podem estar também. E acredito muito que estejam. Vamos supor que eles possam nos tirar daqui.

- Do hotel?

- De São Paulo. – meus olhos estalam. – Do Brasil, se necessário.

- Mas as fronteiras estão cercadas.

- Foda-se as fronteiras! Só que... Tenho uma condição.

- Qual? – pergunto, desconfiado.

- Eles não vão ajudar todos. Um, no máximo dois.

Observo curioso seus olhos, enquanto fala sobre a possibilidade. Será possível? Há esperanças ainda?

- Mas quem são seus pais?

- São importantes. É o que são. O que me diz?

- O que dizer? Isso é um grande SE. Não temos certeza de nada. Não há chance, cara.

- Ok. – Oliver se levanta e vai até a porta. – Mas pense na proposta. Mesmo que seja um SE.

E sai.

Quão importantes devem ser os pais do garoto? Será filho do presidente? Mais importância que essa não me vem à mente.

Vamos supor, apenas por um minuto, se a proposta tiver fundamento. Ele disse que levariam um – eu – ou dois no máximo. Quem seria esse número dois? Dani, com certeza. Mas e Yerik? Não é possível que não se sensibilizassem com o bebê, a ponto de deixá-lo no meio desses canibais.

Acho bem improvável. Mas, se isso acontecesse, então não haveria espaço para Daniela. E Yulia não ficaria pra trás sem a criança, nisso posso apostar. E eu não poderia deixar Daniela pra trás. Ou poderia? Ela me deixaria?

Chega! Não há necessidade pra fazer escolhas ao léu. Isso não vai acontecer.

Vai?

O pensamento me foge da cabeça ao ouvir o grito agudo de Yulia misturado ao som de vidro quebrando.



♦ ♦ ♦



Alguns minutos atrás.

Deitada de lado na cama macia, Yulia brincava com o pequeno Yerik, que parecia sonolento após mais uma refeição. A russa podia esquecer-se de comer, mas nunca de alimentar a criança. Em alguns momentos imaginava se estava cuidando bem dele. Sentia-se totalmente responsável por sua segurança. Acreditava em destino, e não haviam sido unidos sem propósito em um momento tão inesperado e assustador como o que se encontravam.

Deslizando o indicador pela pele clara e macia do pequeno, lembrava da mulher de cabelos negros sofrendo no chão daquela lanchonete, cercador por estranhas pessoas. Pessoas com cólera nos olhos. Com fúria assassina nas mandíbulas. Queria estar a salvo em sua cidade, em seu país, mas não conseguia imaginar Yerik caído sob as pernas de sua falecida mãe, à mercê daqueles loucos. Via-se como um anjo, embora a santidade estivesse longe de sua alma, de sua pele. “Ás vezes, por propósitos desconhecidos, até mesmo os demônios são destinados a fazer algo bom”, pensava ela.

Assim que Yerik caiu no sono, sereno como uma noite estrelada, Yulia observou-o por mais alguns segundos e levantou-se, empurrando a porta, sem perceber que deixara uma discreta brecha aberta. Dirigiu-se ao banheiro e despiu-se. A blusa de renda preta foi jogada para um canto do aposento, sendo acompanhada pela saia também escura, de veludo. Sem as botas agora, Yulia encontrava-se completamente nua. Seu corpo era muito bem delineado, com as curvas certas nos lugares certos. Sua pele era clara e lisa como porcelana. Seus seios firmes e médios mantinham-se empinados, fazendo jus à beleza de sua idade.

Com passos silenciosos, entrou no Box e, após uma última olhada para o corredor, de onde podia ver o pequeno Yerik dormindo profundamente, fechou a porta de vidro e ligou o chuveiro.

Suspirou fundo quando a água quente caiu sobre seu rosto, deslizando pelo corpo. De olhos fechados, passava a mãos pelos cabelos vermelhos e visualizava mentalmente uma energia negra esvaindo pelo ralo. Como era bom desprender-se da realidade, mesmo que por breves minutos. Sua vida não estava nada boa, mas agora afundara de vez. Não conseguia ver futuro para si. Contraditoriamente, via, muitas vezes, seu pupilo entregue à segurança, correndo por um gramado e brincando com Thor.

Já relaxada, começou a cantar uma música que gostava muito.

Naverno, eto moy ray
Iskat' ego otrazhen'e
V predmetah chernogo tsveta
I slishat' v golose may.

Alguém caminhava em direção ao quarto onde Tiago e Oliver conversavam. De repente, a doce voz cantando algo em russo ecoou pela porta entreaberta do quarto mais próxima. O alguém mudou o rumo.

Naverno, eto moy ray
V luchah okonnogo sveta
Tak blizko kazhetsia nebo
Kogda glaza tsveta ray...

Empurrando a porta, olhou ao redor e não viu nada que chamasse atenção. Seu único foco era a melodia que bailava no ar como um encanto.

I horosho, chto on ne znaet pro takuyu kak ya
I chto v mechtah moih vanil'nie snechinki - zima
A pod shagami bosonogimi meteli i liod.
On bol'she nikogda iz misley moih ne uydet.

Yerik deve ter sentido algo ruim por perto, pois abriu os olhos prontamente, como se nem estivesse dormindo. Fazendo beicinho, começou a chorar. De início, o choro era baixo...

I mne ne stidno zakrichat o tom, Chto Eto Lubov'!
Ego slova na tri minuti tak prozhgli moyu krov'.

... mas foi aumentando...

Ya prodolzhau povtoriat' sebe, chto vse horosho,
No ponimayu, on mne nuzhen, nuzhen esche.
... e então, Yulia ouviu seu choro. Direcionando o rosto coberto de sabão à água, esfregou os olhos no mesmo instante em que o rosnado feroz e o choro desesperado de Yerik se misturaram. Quando conseguiu abrir os olhos e pegou na borda da porta do Box para abri-lo, só teve tempo de proteger-se dos estilhaços cortando-lhe os braços após o impacto do infectado contra o vidro. Gritou ao ver a mulher debatendo-se sobre Yerik enquanto ela mesma se protegia do homem que a atacava. Viu também sangue.

Era seu.



♦ ♦ ♦



Saindo para o corredor, vejo Oliver ainda no fim do mesmo, olhando alarmado em direção ao quarto de Yulia.

- O que aconteceu? – pergunto.

Ele balança a cabeça, tão surpreso quanto eu. Indo rapidamente em direção à porta escancarada, deparo-me com a mulher vestindo um uniforme negro. Deve ter por volta de quarenta anos. Se debate como uma louca sobre a cama, tentando desvencilhar-se do cão com os dentes cravados em seu ombro. Não consigo distinguir quem rosna mais, se Thor ou a infectada. O sangue espirra pelo lençol em vários pontos ao passo que os caninos do animal entram mais profundamente na carne da mulher. Um som abafado pela briga quase passa despercebido. Yerik chorando. Mas onde?

- Putz! – Oliver grita atrás de mim, terrificado com a cena.

- Yerik! – grito.

Onde está o bebê?

Os gritos de Yulia no banheiro perfuram meus tímpanos. Há duas brigas neste aposento. Mas, se eu passar, posso entrar em uma delas. Ou nas duas, quem sabe. Não é uma ideia muito interessante.

- O que tá acontecendo? – a voz alterada de Pablo vem da esquina do corredor. - É o Thor?

E corre, ao ouvir os rosnados, reconhecendo o “filho”. Quando chega ao quarto, quase fica sem ação.

- Thor!

No mesmo momento, o cão solta a infectada e olha em direção ao chamado, latindo, como se dissesse “Aqui!”. Um erro feio. Numa virada mais rápida do que todos esperavam – inclusive eu -, a mulher lança-se em nossa direção. Na pressa do susto, recuo, pisando no pé de Oliver, que enrosca a perna no joelho de Pablo. Nós três caímos, mas lanço-me pro lado a tempo de evitar a investida da insana criatura. Oliver foi rápido também, pois, ao virar-me, vejo Pablo segurando-a pelos braços, enquanto ouve os dentes batendo próximos ao seu pescoço. O sangue e saliva espirram na camisa cinza do homem, lutando por sua vida.

Oliver apenas assiste de olhos arregalados, sentado de costas pra parede do outro lado.

- Me ajuda! – grita Pablo, entre dentes. Consigo ver as veias saltando sobre seus músculos rígidos. A mulher é forte.

Olhando ao redor não encontro nada que possa usar como arma. Por instinto, levanto-me rapidamente e, com um chute certeiro, acerto o rosto da mulher. Ela apenas olha para meu lado, rosna, e volta a investir contra Pablo. Acerto outros chutes em sua costela, o mais forte que consigo, mas ela parece não sentir dor. Só grunhe mais alto. Sinto que a dor vai tornando-a mais feroz.

- Não tá adiantando, Tiago! – grita Pablo.

Penso em agarrá-la pelos cabelos e puxá-la – o que atrairia sua atenção totalmente pra mim – mas um chamado no fim do corredor evita que eu cometa tal idiotice.

- Aguenta!

É Lizzy. Está acompanhada de Daniela, que olha aterrorizada à cena. A agente vem correndo alarmada com sua submetralhadora empunhada.

- Vai acertar ele! – grita Daniela, trêmula.

- Atira! – grita Pablo, ainda mantendo-a longe o bastante para apenas sentir seu hálito podre rasgando as narinas.

- Levanta ela! – grita Lizzy em resposta. Se atirar de onde está, provavelmente vai acertá-lo. – Que gritos são esses?

Por um momento, quase esqueci a russa. O que estará acontecendo lá dentro?

- É Yulia! – respondo. – Acho que foi atacada por outro.

Olhando indecisa, Lizzy se aproxima da infectada. Perto até demais. Cravando os dedos em sua nuca, agarra-a pelos longos cabelos e, encostando a ponta da arma em sua cabeça, atira. O rosto de Pablo fica inteiramente vermelho, com pedaços dos miolos da mulher espalhados ao seu redor, e inclusive em si mesmo.

- Argh! – berra ele, rolando de lado e levantando-se rápido.

Lizzy a puxa com força e joga-a do outro lado, onde um círculo de sangue aumenta gradativamente em volta de sua cabeça pelo chão. Oliver levanta-se num pulo. Dani grita.

- Yulia!

- Yerik! – rebate Pablo, esfregando o sangue de seu rosto e cuspindo na parede.

Entramos correndo no quarto e vemos o sangue em todo o lençol. O pior aconteceu. Yulia grita enquanto berros disformes são emitidos.

Pablo, Lizzy e eu corremos ao banheiro onde vemos os estilhaços espalhados pelo chão. Em meio à bagunça, Yulia mantém um homem, mais pra gordo do que magro, da mesma maneira que Pablo no corredor. Aproximando-nos, percebemos que não o segura pelos ombros, e sim pela boca. Enfiou os dedos em sua boca, agarrando-o pela pele das bochechas, onde várias partes da gengiva soltaram-se e liberaram uma cachoeira de sangue. Na fúria da defesa, desfigurou-o, quase arrancando o couro de seu nariz. Para o azar da ruiva, os dentes continuavam no mesmo lugar.

- Proklyat!

Com violência, Pablo aproxima-se e pisa no espaço entre o tornozelo do infectado, onde ouvimos um estalo. Uma fratura exposta. O osso sai da canela do homem, que urra, erguendo a cabeça. Lizzy aproveita e atira. Em cheio. Mais miolos nas paredes.

Yulia levanta-se completamente desnorteada e joga pedaços do lábio e bochechas do infeliz no chão, desprendendo-os dentre os dedos e cravados nas unhas. Murmura várias palavras atropeladas, onde “Yerik” são quase todas. Pego uma toalha e tento enrolá-la, mas está fora de si, empurrando meu braço. Se percebeu que está nua, não tem pudor algum então.

- Yerik... Yerik...

Como que atraída, sai do banheiro e chega ao quarto, onde Daniela segura um pequeno corpo nos braços. Oliver está do outro lado da cama.

- Yerik... – murmura. E desmaia.

Correndo até ela, vemos sangue em grande parte de seu corpo despido. Olho para Daniela de olhos arregalados. Ela me olha da mesma maneira.

Um silêncio mortal abata-se sobre o quarto. Nem Thor, parado aos pés de Dani, late.

Quando a mãozinha de Yerik levanta-se em direção ao rosto de Daniela, todos trememos.

 
.

20 mordidas:

Anônimo disse...

Uhuuu
Que belo presente de Natal você nos deu, Tiago !!!
Valeu a longa espera por esse capítulo, está cada vez melhor xD
Abraços

20 de dezembro de 2009 às 01:32
Anônimo disse...
Este comentário foi removido por um administrador do blog.
Anônimo disse...

Mano parabéns pelo capítulo 20.. naum sei se todo ou o pedaço... cara minha inspiração até voltou MTO foda ( eu tinha quase me esquecido de como terra morTa é foda xD) amo! *-*

21 de dezembro de 2009 às 22:26
terr@morta disse...

Positivo meu amigo. Como sempre, muito bom, espero afoito o próximo capítulo. E digo que com seu aval gostaria de seguir essas mesma história no Rio de Janeiro. Se é que a mesma não chegará aqui por seu teclado.
Abraço!

23 de dezembro de 2009 às 23:06
Anônimo disse...

mtooo fooda, esperando ansiosamente o proximo capitulo *-*

28 de dezembro de 2009 às 01:25
Yu V. disse...

Gelei com o final, e parabens vc conseguiu me deixar com muita curiosidade...
P.S : a História tá muito sinistra.

28 de dezembro de 2009 às 19:47
Mateus Medeiros disse...

Noooosa mano ! mto foda msmo . . . um best-seller dos blogs ! xD
- cara ... vc e um romero nato , velho ! mee deeixoo curioso e arrepiado com o final . me entrenti no capitulo 20 . eae manoo tipo ... qndo eh q vc vai trazer pra gente o cap. 21 ? - Abraço ae iii feliz natal ;D

29 de dezembro de 2009 às 18:58
Gabriel Anunziato disse...

Cara muitu muitu foda, parabens, vc devia lançar um livro, de preferencia com essa historia, eu devorei em 1 dia os 20 capitulos, sentado durante 7h direto hahaha, mais confesso que valeu muitu a pena, estou louco pro cap 21, no aguardo ! abrçs ;D

4 de janeiro de 2010 às 05:54
Banha disse...

Parabéns pelo excelente trabalho! Realmente a história é ótima e me sinto numa tensão de lascar enquanto leio.
O cap.20 realmente foi ótimo. Essa sensação de falsa segurança sendo despedaçada é mesmo terrificante. Mal posso esperar pelo próximos capítulos.
Mais uma vez, parabéns!

15 de janeiro de 2010 às 15:36
Brenno Matthias disse...

O q aconteceu? ontem o capitulo 21 tava aki? OU EU TO FICANDO LOUCO?

"A ULTIMA COISA Q EU OUVI FOI UMA PORTA ABRINADO ATRÁS DE MIM..."

20 de janeiro de 2010 às 15:52
Tácia disse...

Poxa, sou super fã dos zumbis. Estou adorando a estória. Li tudo em um dia e agora estou ansiosa pelo próximo capítulo. Vê se não demora muito, ok?! Parabénszzzzz

10 de fevereiro de 2010 às 20:37
Mineiro Viajante disse...

Tiago,
Meus parabéns pela história!
Não deixa devendo nada à contos de terror que adoro! E supera em muito tramas de filmes de zumbi atuais!
MEUS PARABÉNS!

Agora falta saber quando que vai continuar a história!
Todo doido pra ler mais!
Abraços

20 de fevereiro de 2010 às 18:39
Elioth disse...

História muito boa. O triste é que um dos meus favoritos (acreditem ou não, Yerik xD) Vai virar zumbi. Ou pelo menos parece. Ansioso pelo 21;

26 de fevereiro de 2010 às 16:34
Anônimo disse...

muito fodaaaaaaa, agora ten q espera o kapitulo 21...

26 de fevereiro de 2010 às 18:08
Anônimo disse...

Ow, muito fóda a história, vc está de parabéns!

eu quero saber o que acontece com Yulia... ela era minha favorita, só pq o nome dela é o da cantora do TATU! *=*

não mata ela, nem transforma em zumbi... :/
nemm o Yerik...

mata os agentes! *-* menos a lizzy!

mas tá de parabéens! a história tá excelente

28 de fevereiro de 2010 às 14:55
Cami disse...

começa a ficar super tenso de uma hora para outra ahhahaha

6 de março de 2010 às 05:48
Samir disse...

oO d+ mesmo!
Tive que parar de ler pois tava apertado na facul e to pirando com os capitulos agora
vc é phoda mesmo kra parabens

23 de março de 2010 às 01:47
Anônimo disse...

que fodahh!!!

12 de maio de 2010 às 01:05
Tiago Toy disse...

Sejam bem-vindos novos infectados, e aos antigos, espero que continuem sobrevivendo.

Grande abraço!

7 de julho de 2012 às 18:55
Anônimo disse...

N acredito que vc matou a yulia, eu gostava dela vc n podia ter feito isso tiago toy ...eu queria muito que ela n tenha morrido

21 de novembro de 2012 às 00:33

Postar um comentário