Leia o início de Teoria e prática de como ser um zumbi



Não posso me queixar do planeta ter sido tomado por zumbis. As coisas não estavam indo lá muito bem. Violência desmedida imperava, líderes políticos preferiam roubar em vez de ajudar, crianças matavam e não iam a julgamento. O pior eram os programas de TV, uma ofensa à inteligência. Não, minto. Nada superava a música, uma tortura sonora recheada de pornografia e onomatopeias irritantes. Bons tempos os da MPB.
Ninguém sabe de onde os zumbis vieram. Houve todo o tipo de especulações. Uns diziam ser resultado de uma experiência governamental malsucedida; outros, castigo dos céus. Veja aí a eterna desavença entre ciência e religião, defendidas a unhas e dentes por seus seguidores até para provar quem ferrou com tudo. Não tenho uma opinião formada e não sei quem pode estar certo. Tanta porcaria jogada no meio ambiente, rios e mares poluídos, atentados com bombas químicas, o homem brincando de Deus. Sim, pode ser culpa da ciência. Por outro lado, há mais mistérios entre o céu e a terra do que sonha nossa vã filosofia. Sim, também pode ser castigo divino.
Quando os primeiros casos foram registrados, os ataques foram associados a uma nova droga – como se já não houvesse o bastante. Pessoas mordendo outras, as infectando e transformando. O problema foi quando os mortos saíram dos túmulos. Ninguém estava preparado para aquela merda. Era a versão real de tudo exibido à exaustão pelo cinema, mas mais visceral. Seria cômico se não fosse trágico ver um defunto levantando em seu próprio velório e comendo a tia gorda se debulhando em lágrimas ao lado do caixão. Pode rir. Não vou te julgar.
O governo gastou bilhões na tentativa de reverter a situação criando vacinas, mas, se nem as forças armadas tiveram êxito com suas metralhadoras e tanques de guerra, o que dizer de agentes médicos equipados com seringas? “Vem, zumbizinho, tomar injeção na bundinha”? E o homem ainda se acha inteligente. Por favor. Sem poder contar com o governo, o qual resolveu declarar estado de emergência tarde demais, provavelmente por puro orgulho, os civis passaram a agir conforme seu instinto. E, convenhamos, instinto humano é uma bela porcaria. Você pensa estar agindo corretamente, mas outra perspectiva mostra o quão errado você, de fato, está. Perdi as contas de quantos prédios, potenciais fortes de resistência, foram desperdiçados graças à burrice do homem. Pra começar, o maior erro era andar em grupos enormes e barulhentos. Era a mãe, a avó, o tio peidorreiro, a tia histérica, os sobrinhos mal educados. A família inteira agia como se estivesse de férias. Bastava chegarem ao local e logo os zumbis o cercavam. Indisciplina e despreparo resultavam em mortes lentas e agonizantes. Quando não, todos queriam governar em uma terra sem lei. Surgiram líderes insanos, governadores psicóticos ou apenas sujeitos armados fazendo de suas armas a nova lei. Nenhum vingou.
Desde antes do Dia Z, como gosto de chamar a data em que os zumbis surgiram, sempre fui um puro nerd, no sentido mais literal da palavra. Passava horas pesquisando sobre eles e continuei até a internet ir para o espaço. Podia não gostar de esportes e aventuras radicais, mas meu cérebro estava preparado para me auxiliar na sobrevivência. Não cometi nenhuma burrice, como andar em grupos grandes como uma ala carnavalesca, nem deixei o pânico me trair. Me juntei a um número mínimo de vizinhos em meu prédio, reunimos nossos recursos, saqueamos os outros apartamentos e nos enfurnamos no último andar. Não adiantava ir para o norte, sul, leste ou oeste. Conhecia bem aquele ditado: “a grama do vizinho é mais verde”. Se estava ferrado aqui, estaria lá. Não desperdiçaria minhas energias em viagens sem sentido.
A vista privilegiada nos permitia ver grande parte das construções e toda atividade ao redor. Nos permitiu ver também ondas de humanos lutando por suas vidas, pessoas tentando fugir enquanto outras as puxavam para poder passar na frente. Todas tiveram o mesmo destino, consumidas pela massa crescente de zumbis. O apartamento era propício para resistir. Mas há uma coisa que ninguém te conta sobre sobreviver: é extremamente tedioso.



Trecho do conto Teoria e prática de como ser um zumbi, escrito por Tiago Toy (euzinho) como autor convidado da antologia Vírus Z - Apocalipse Zumbi, a ser lançada pela Ed. Crescente e organizada pela escritora Silvia Vieira Fragoso.

2 mordidas:

Wallace disse...

Adoro sua narrativa, realmente é muito boa ;D

21 de maio de 2013 às 21:07
Tiago Toy disse...

Obrigado, Wallace!

21 de maio de 2013 às 21:18

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