Relato de sobrevivência #03: Amor carnal



Minha vida mudou sem que eu percebesse.
Fora um simples instante, um único momento de desatenção, um piscar de olhos. Sonhei por segundos e, ao despertar, tudo estava diferente, tudo fora tirado de mim. Pouco antes, estava deitada em minha cama, sentindo a fragrância do perfume de rosas acomodar-se em minha pele, agraciando meu corpo com a jovialidade e o feminismo que deveriam surgir naturalmente, mas exigiam de mim um cuidado extra. Esticava os braços num espreguiçar indelicado, incapaz de me tranquilizar pela situação.
Em dias comuns, estaria ali, atirada nos travesseiros com um livro, apoiando os cotovelos no estofado de meu colchão para acalentar a leitura de uma obra de fantasia. Agora, entretanto, as coisas eram diferentes. Não havia calmaria, não havia tranquilidade. Eu estava lá, deitada, descansando por uma fuga que fez de minha família farrapos. Não fugíamos da polícia, ainda que preferisse esta situação, ou qualquer outra, do que afrontar aquela realidade temível que nos assolava. Fugíamos do sobrenatural, daquilo que desejava nos devorar. Um surto inesperado, espalhado de maneira avassaladora pelo estado de São Paulo, uma verdadeira praga. Alcançou meu lar sem dificuldade alguma, estendeu seu manto caótico pelas ruas turbulentas da movimentada Taubaté. Tentamos ignorar, fingir que nada acontecia, mas não havia fuga. Estávamos enfrentando o fim do mundo, assistindo ao fim de nossas vidas.
Além de sobreviver, nada mais restava.
Por esse motivo, e por alguns outros de pouca importância, eu apenas me espreguiçava por ter de espreguiçar, esticando meu corpo ao limite após um exercício que não tinha o costume de praticar. De súbito, o momento silencioso se alternou numa catástrofe, ouvi gritos. Senti a pele esfriar, sem entender. Meu corpo não se movia, recusava as ordens apavoradas que meu cérebro despejava. Os gritos aumentaram, minha visão falhou, nauseei. Tentei me levantar da cama, apoiar nas paredes, algo me feriu. O sangue escorria de um corte acima de meus seios, transparecia as curvas adolescentes em minha blusa mais nova, misturando a vermelhidão de minhas energias ao suor de minha exaustão. Gritos, pancadas, estrondos, o raspar de garras nas paredes. Aquele desastre seguia-se ensurdecedor, atrapalhava meus sentidos, que por si só já estavam confusos.
Então, tudo voltou ao normal.
Talvez não normal, mas algo assim. Senti-me enxergando bem, capaz até mesmo de me livrar dos óculos. Pisquei, esperei que a visão deixasse de turvar, espantei-me com a primeira imagem que recepcionou meus olhos castanhos: minha família.
Ao meu redor, cheirando à podridão, despejando suas vidas por todo o quarto. Pedaços de línguas, nervos e estômagos se espalhavam por todo o chão, acompanhados de minhas coleções de filmes e revistas de rock. Agonizaram por suas mortes grotescas, meu pai, minha mãe, minha irmã mais nova. Mortos, todos eles, destroçados de maneira violenta nas proximidades de meu corpo. Eu enxergava perfeitamente, mas preferiria nunca mais enxergar na vida. Daria minha sobrevivência a eles, se pudesse. Daria tudo para ter a minha família de volta.
Infelizmente, não seria possível.
Chorei, ou algo similar àquela sensação de tristeza. Lágrimas escorreram por meu rosto, mas me confundiram o paladar, que as flertava ansioso pelo sabor de sangue que alcançava meus lábios. Talvez estivesse ferida nas bochechas, o choro se misturava ao sangue. O que importava? No fim, eu estava ali, viva, e todos eles mortos. Todos os que amei, todos aqueles por quem fiz sacrifícios, por quem faria muito mais. Todos aqueles que me amaram, que retribuíram minhas carícias, que me mostraram o verdadeiro significado do mundo, da vida, da existência.
Na verdade, não todos.
Restara um. Minha única esperança.
Ele morava longe de mim, mas logo estaria ali. Sempre dava um jeito de chegar até minha casa, seja um ônibus, uma moto ou mesmo uma bicicleta. Sempre estava lá, mesmo quando eu mandava que não viesse, mesmo nas horas em que acreditava que nosso relacionamento realmente estivesse terminado. Era um bom garoto, um bom homem. Mais velho, responsável, ainda que bobo. Logo estaria ali, meu amado, minha última esperança.
Eu só precisava sobreviver.
Olhei ao redor, não havia ninguém. Apenas corpos, sangue e morte, para todos os lados. O responsável por aquela atrocidade fugira, a janela estava aberta. Tive sorte, como sempre. Uma qualidade, uma vantagem talvez, mas que sempre me custara ver os outros ao meu redor perderem tudo enquanto eu me dava bem na vida. Esgueirei-me pelo meu próprio quarto, tomando cuidado para não fazer barulho naquele cômodo onde o Heavy Metal urrava até altas horas da madrugada. Parecia ironia. Empurrei uma pilha de roupas com os pés, livrei-me dos obstáculos que me impediam de caminhar. Cambaleei pela minha casa, sentia uma tontura descomunal. Abri a porta de meu guarda-roupa com os braços fraquejando, o movimento arrastou a cabeça de minha irmãzinha, meu pranto me torturou.
Encontrei a escuridão que armazenava minhas vestimentas. Diversas, inúmeras peças de uma luxúria desperdiçada. Joguei tudo ao chão, deixei que os vestidos claros de formatura se banhassem no sangue de minha família. Entrei, fechei a porta, ignorei o medo de escuro. Teria de esperar, de me esconder, calar meu sofrimento até que meu herói estivesse ali, pronto para me salvar.
Sozinha no breu de um porta-objetos, afastava a insanidade com palavras gélidas e de pouco significado:
—Ele está chegando, Lilian. Ele está vindo para te salvar.
Ele era o meu amor. Minha única esperança.
Senti fome.

***

O cheiro de esgoto me incomodava as narinas, mas não havia esconderijo melhor do que aquele.
Não eram bem túneis; estavam mais para ruínas, destroços da rede de esgotos da cidade, uma trilha que encontrei por acaso após perder meu carro numa batida. As ruas onde brinquei durante minha infância estavam destruídas, guiavam até paredes de impedimento ou hordas daqueles seres. Afinal, o que eram aquelas coisas? Gostaria de arrumar um título diferenciado, algo distante dos filmes e livros que tanto me aterrorizaram a juventude, mas não havia nada além daquele termo bastante conhecido: zumbis. Descerebrados, descontrolados, famintos pela carne e pelo sangue e pelo cérebro, tudo aquilo que não mais lhe serviam.
Zumbis.
Era difícil acreditar, mas mais difícil ainda era agir após encontrar um deles. Não sou o tipo de valentão de escola, disposto a enfrentar qualquer pessoa maior do que eu sem temer, muito menos uma criatura que sequer vive. Busquei aquilo que jazia aos meus pés, fossem pedras ou barras de aço, pedaços de metal ou aros restantes de um veículo esmagado pela fome daqueles monstros. Golpeava com toda minha força, esmagava as pernas e os torsos, feria as cabeças com as peças de metal desfiado. Não havia sangue, muito menos dor ou gritos. Gemiam, recuando alguns passos pela tortura de suas mentes deformadas, então voltavam a avançar, esticando os braços em busca do alimento, da refeição, daquele que invejavam por viver. Logo entendi que minhas opções eram míseras, e a melhor delas era correr, fugir, se esconder.
O subsolo me pareceu tentador assim que encontrei aquela entrada inesperada. Abandonei o carro de imediato, dane-se o valor daquele bem material. Minha carne não custou preço algum, mas me importava muito mais com aqueles músculos atrofiados pelo sedentarismo. Abri a porta contra dois mortos-vivos, empurrei-os para longe com um impulso no estofado, saltei e corri enquanto minhas pernas suportaram. Pisei em falso uma vez, tropecei, me recompus em milésimos, o pavor me mantinha atlético. Forjei uma escadaria nos destroços e penetrei no subterrâneo da cidade onde nasci, um lugar que jamais pensei conhecer.
Gostaria muito de um encanamento em circunferência no subsolo de Taubaté, mas não era aquele o caso, portanto, tinha de comprimir meus cento e oitenta centímetros para que conseguisse trespassar aquela nojeira aquosa que impregnava meus tênis. Arrastava os pés, patrulhando como fiz uma vez antes, no militarismo teatral das forças armadas. Apoiava nas paredes imundas quando era necessário, num tropeço ou mesmo quando as substâncias acopladas ao solo nauseante pareciam prestes a me aprisionar como uma corrente de fezes e urina. Por vezes tive de me ajoelhar, evitando partes de concreto e metal tombado de automóveis ou construções desabadas. Se aquele não era o fim do mundo, não sei o que seria.
O que realmente me assustava era o súbito da situação. Ninguém esperava por aquilo. Sem aviso, como se desperta de um sonho, fomos invadidos por criaturas comedoras de gente viva, adornados com seus murmúrios lamuriosos numa marcha incessante para saciar aquela fome infindável. Não houve explosões, chuva de meteoros nem nada do tipo. O apocalipse veio do solo, caminhando com pressa, incapaz de carregar o poder colossal e destrutivo de um terremoto, uma onda gigante ou uma erupção vulcânica, mas nem por isso tínhamos facilidade em sobreviver. Deixei-me viajar em pensamentos, arquitetando planos de fuga e caça, refletindo em possíveis lugares para encontrar mantimentos e, tenho de confessar, em luxos que poderia conseguir gratuitamente naquele momento onde loja alguma estaria de lojas fechadas e alarmes ativados. Acima de tudo, pensava nela, em minha amada, a única pessoa naquela cidade capaz de mudar a minha vida, meus hábitos e, mesmo nos piores momentos, estampar um sorriso gracioso em meu rosto.
Lilian.
Ela estava longe, em sua casa. Muito antes, quando todo aquele pesadelo começou, mandou-me uma mensagem trêmula, contornada pelos corretores ortográficos de seu aparelho celular. Dizia: As coisas estão péssimas, Thomas. Preciso de você! Eu te amo! De suas três frases, a que mais me chocou foi a primeira, pois, para Lilian, as coisas nunca estavam péssimas. Imaginei que aquele distúrbio que avassalava nossa cidade teria alcançado seu bairro muito antes do meu e, assim, ela logo se tornaria alimento para as criaturas desprovidas de raciocínio. Tentei evitar o pessimismo, mas a cada instante aquelas sensações se pareciam mais com o realismo, com situações que pareciam impossíveis de se evitar. A cada vez que fechava os olhos numa piscadela, via seu corpo estirado em minha mente, ensanguentado pela infecção, tomado pela praga que assolou o interior de São Paulo e além.
Perdido naqueles pensamentos, não escutei quando uma bolha suspeita estourou num canto mais profundo daquele rio de imundice.
Alguma coisa se moveu, percebi de imediato. Interrompi os movimentos, respirando com suavidade para evitar arfar no pavor do momento. Corri os braços nas proximidades, encontrei um cano solto num reservatório qualquer, arranquei-o do lugar com um puxão bem colocado. O ranger do metal ecoou na escuridão, seguido de perto por um ruído macabro, similar ao ronronar de um felino. Com as pernas trêmulas, ergui um dos braços, deixando o golpe preparado para a necessidade. A mão livre tateou minhas vestes para encontrar o celular, umedecido pelo contato com o esgoto mas, por sorte, ainda funcional. Abri o flip do eletrônico com os dedos, deixei que a luz fraca iluminasse o caminho à minha frente.
Estremeci.
Havia algo ali. Algo que contaminou todos os meus pesadelos pela eternidade.
As presas curvilíneas se uniam como um zíper, deixando o sorriso tomado por uma loucura sanguinolenta, repleto de guinchos e espasmos corpóreos, prova de que a mutação já mutilara toda a humanidade que restara naquele corpo. Unido à aguaceira pútrida daquela região, a criatura tinha guelras e nadadeiras, espalhadas numa pele mórbida e acinzentada que exalava o cheiro de morte passada. Seus olhos não tinham brilho ou vida, eram nada mais que esferas alvas, sem pupilas ou íris, ou mesmo cílios abaixo das sobrancelhas. Pedaços da cútis se desprendiam dos braços e das pernas, e o corpo despido era uma monstruosidade por si só, deixando que os órgãos pendessem por aberturas na altura do estômago, sacudindo feito pêndulos apodrecidos e fétidos.
Sem pensar duas vezes, movi o cano num ângulo perverso, atingindo a têmpora daquele ser sobrenatural, senti seu crânio trincar abaixo do metal. Insuficiente para derrubá-lo, obviamente, e logo voltou-se para mim, guinchando em sua fome anormal, agarrando meu corpo com suas mãos congelantes. Ataquei outra vez, gritava sem perceber, e quem não gritaria? Chutei seu corpo para longe, arqueei o cano como uma espada medieval, desloquei o maxilar já estragado pela doença. Recuei um passo, preparei um novo golpe, senti algo diferente sob meus pés. Havia outro daqueles monstros, saltando sobre mim como uma piranha devoradora de homens. Esquivei-me por sorte, tombando com meu jeans recentemente adquirido numa poça de vómito de um bar das ruas superiores. Nem mesmo tive tempo para reclamar, levantei-me e corri. Não havia como enfrentá-los, eu sabia. Precisava correr, fugir.
Precisava sobreviver, pois apenas assim encontraria Lilian.
Viva ou morta.
Voltei o caminho que fiz uma vez antes, satisfeito apenas quando avistei a iluminação da superfície surgir vagarosa naquele encanamento sinistro. Os monstros estavam atrás de mim, arranhando as paredes e chutando a asquerosidade daquele local nas minhas costas, mas não me importava. Escalei com presteza, jogando o corpo para o solo pavimentado das ruas centrais de minha cidade enquanto as criaturas urravam pelo mantimento que fugia de suas garras. Virei-me para elas uma última vez, atire o cano na direção do olho da mais próxima. Levantei o dedo médio como um aceno, apesar de saber que elas não entenderiam. Era um gesto para mim, não para elas.
Quando retornei, o sol já parecia prestes a desaparecer no céu. Era um fim de tarde cinzento, pois mesmo as nuvens pareciam infectadas por aquela doença misteriosa. Naquela confusão de veículos inertes, encontrei uma motocicleta funcionando. Estava ligada, atirada na rua como se abandonada para uma fuga desesperada. Levantei-a apressado, testei o acelerador e a embreagem, perfeitos. Uma pequena alteração na roda dianteira tornava as curvas um tanto desreguladas, mas não havia tempo para o conserto. Acomodei-me no banco acolchoado daquela Yamaha de anos anteriores e acelerei, desprezando a utilidade dos capacetes de proteção, como se não houvesse amanhã.
Afinal de contas, talvez realmente não houvesse.

***

Eu estava no escuro, sozinha. O silêncio era a maior das torturas, uma melodia fúnebre e pavorosa que enlouqueceria as pessoas mais frágeis. Como eu. Uma garota, uma adolescente fragilizada por uma situação de guerra, um momento em que a hostilidade é comum até mesmo para seus próprios familiares que, sem que saibam, podem estar contaminados pela praga que se dispersou naquela região, assim como em tantas outras.
Havia brechas miúdas em meu guarda-roupa, e elas eram as responsáveis por minha respiração. Mantinha-me encostada nas portas, tragando o ar que conseguia trespassar aquelas míseras frestas na madeira, sem desejar enxergar o que acontecia do lado de fora de minha fortaleza artificial. A curiosidade, entretanto, logo me venceu. Abri os olhos, forçando o rosto contra aquela superfície lisa e calorosa do móvel, ainda que no momento parecesse tão fria quanto o restante de minha casa. Semicerrando um dos olhos, como quem faz mira num armamento para focalizar seu alvo, busquei os corpos dos meus pais no exterior daqueles escudos de mobília, mas não os encontrei. Estavam lá até pouco tempo atrás, mas agora não havia nada. Barulhos, entretanto, se espalhavam com uma voracidade cada vez maior, ruídos de um mastigar esfomeado, como um cão de rua presenteado com uma baciada de carne fresca e macia.
Num vestígio de esperança, busquei pelo corpo de minha irmã, decapitada num momento imperceptível. Ela estava lá, encontrei seus olhos congelados num susto momentâneo. Seu corpo, no entanto, não estava abandonado como sua cabeça. Estava atirado, de braços e pernas abertas, as vestes arrancadas permitindo que sua nudez infantil ficasse à mostra. Acima dela, meus pais.
Vivos, ou o mais próximo disso que poderiam estar.
Mastigavam a carne da filha mais nova como se nunca a tivessem conhecido, agachando-se sobre seu corpo miúdo numa disputa feral pela maior quantidade de alimento. Vi quando meu pai arrancou um dos tornozelos da caçula, facilmente livrando as juntas de seus ossos do restante da perna, e logo aquela peça humana desbravou os ataques ferozes de suas arcadas dentárias, ferindo a gengiva e revirando entre os lábios ressecados daquele monstro meio-morto. Minha mãe, do outro lado, arrancava os olhos da filha com os dedos desprotegidos, mascava-os como uma goma de mascar tenebrosa, o que me trouxe a vontade de vomitar. Cobri os lábios com as mãos, uma sensação incômoda, estranha. Não era nojo.
Era inveja.
Eu estava com fome. Queria ter nojo, mas estava faminta, o estômago dentro de mim parecia um ser vivo e consciente, livre dos domínios de meu cérebro. Implorava pelo contato com a carne, com o sangue, com um alimento cru. Ignorei aqueles pensamentos, estava enlouquecendo. Senti-me suar frio, mas tudo estava frio ao meu redor. Minha pele, minhas genitais, meus ossos, tudo parecia prestes a congelar.
Como um cadáver.
Um cadáver vivo e faminto.

***

Naquele momento, eu era o melhor piloto de minha cidade.
Talvez fosse o único, não sei, mas me arrisquei em curvas intensas, desviando daquela horda repugnante, assistindo enquanto partes de seus corpos pútridos despencavam ao solo, tentando entender as motivações dos monstros que seguiam lado a lado e, num surto repentino, se atacavam, mordiscando a carne alheia e devorando a si mesmos num desespero mútuo pelo ato de mastigar. Desviei-me de alguns dos seres, ainda que a vontade de atropelá-los fosse grande. Estava em uma motocicleta, não uma arma. Ainda assim, quando possível, me aproximava de algum monstro daquele e o chutava sem diminuir a velocidade, empurrando-o nos destroços ou num abismo rústico.
Acelerei, deixei o centro da cidade para me dirigir a um bairro mais afastado, onde meu amor me esperaria. Ou não, mas não queria pensar assim. Esforçava-me para colocar na cabeça a sua imagem sorridente, a mesma que me encantara anos antes. Ela estaria lá, escondida e viva, esperando pela minha chegada. Queria ligar, mas me dei conta de que perdi o celular nos esgotos, durante a fuga. Sem contato, restava-me torcer para que a gasolina restante naquela moto fosse o suficiente para me levar até meu destino.
Olhei à frente, havia algo de estranho. Escutava o alarme de um carro, disparado pelo frenesi de uma turba revoltada. Ouvi gritos, pessoas, vivos aprisionados entre um mutirão de braços e dentes. Estavam dentro de seu próprio veículo, mas o esconderijo era falho. Com o vidro quebrado, os mortos se atiravam para dentro do carro, arrancavam pedaços de uma garota de cabelos loiros e seu parceiro, um homem mais velho, de rosto rústico e barba por fazer. Enquanto ele socava as criaturas com uma pulseira metálica enrolada nas mãos, sua companheira tinha os seios arrancados por presas vorazes. Indefesa, gritou até o momento de sua morte, e ela mesma se reergueu na direção de seu amado, arrancando-lhe pedaços da têmpora e da nuca, e só então os socos cessaram. Os gritos deram lugar a gemidos, e novas criaturas surgiram ali, em minha frente.
Torci o acelerador como nunca achei que faria antes.
Estava próximo da casa de Lilian quando avistei uma viatura de polícia. Aproximei-me, as sirenes piscavam, sem produzir ruído algum. Percebi que as luzes não atraíam as criaturas, diferente dos ruídos. Parado ao lado da janela do veículo, percebi que dois policiais —uma ruiva de sardas no rosto e um negro – estavam mortos, com as coxas e o peito triturados, respectivamente. Não se reergueram, talvez por terem cortes intensos na altura do pescoço, deixando que as cabeças pendessem numa linha única, uma decapitação falha resultante numa cena grotesca.
Era uma cena triste, mas não havia tempo para chorar. Encostei a moto e desci, corri até eles, encontrei os revólveres municiados em suas cinturas. Peguei ambos, conferi as munições, estavam todas lá. Travei um deles, guardei-o na cintura, o outro não abandonou minha mão, por segurança. Atirara uma vez antes, quando membro do exército, mas ainda me recordava dos princípios básicos. Respiração, acionamento do gatilho, fotografia do alvo, não necessariamente nesta ordem.
Escutei gemidos, e vi que a motocicleta que utilizava já servia como pista de dança para alguns mortos descontrolados. Era um bom meio de transporte, infelizmente perdido. Não havia escolhas. Abri a porta da viatura, puxei o corpo da ruiva para fora, os monstros a atacaram com uma violência descomunal. Sentei-me em seu lugar, mas não sem antes me livrar do copiloto cadavérico, pois ninguém gostaria de dirigir ao lado de um homem que logo poderia se levantar e atacá-lo. Fechei ambas as portas, tentei erguer os vidros, estavam fechados. Liguei as chaves e parti, deixando para trás os corpos dos policiais, devorados por uma horda cada vez maior daquelas criaturas horrendas.
Não era um bom motorista de carros, a autoescola não me ensinou o que deveria saber. Muito menos como pilotar num mundo infestado por zumbis, obviamente. Tive que me virar, girar o volante como uma manobrista de filmes americanos, fazer curvas queimando pneus. Subi um morro similar a uma montanha, estava próximo. As pessoas saíam de suas casas, todas mortas, gemiam lamúrias de suas fomes doentias. Saltavam na frente da viatura, destroçados pelo movimento das rodas incessantes. Diferente da motocicleta, com o carro eu poderia atropelar todos eles sem me incomodar, e assim o fiz. Via no retrovisor quando as criaturas se erguiam, uma perna ou um pedaço do torso triturado pelo motor do veículo não lhe eram empecilhos. Rastejavam quando destruídas da cintura para baixo, seguindo o caminho infindável de suas mentes falhas e confusas. Muitos deles, cada vez mais, atraídos pelo ronco do motor, pelo cheiro de sangue e carne fresca.
Terminei de subir, avistei um abismo. Uma praça servia de lar para incontáveis mortos, todos se viraram para mim ao notar a presença de um novo ser vivo. Encontrei, por acaso, um botão para o acionamento das sirenes, para que o som gritante do alarme policial estrondasse naquelas ruas. Tive uma ideia peculiar, mas minha única opção. A horda parecia infinita, formava uma parede em meu caminho; jamais conseguiria passar por todos eles. Virei o carro na direção do abismo, peguei um objeto qualquer que encontrei nas ruas, esticando o braço através da janela. Ajeitei a marcha, como vi nos filmes, empurrei o acelerador com aquela peça de madeira simplória, abri a porta. A sirene estridente convocou a todos para um salto mortal, eu me atirei para fora do veículo. Senti os cotovelos ralarem, torci um dos pés no salto, mas assisti, inerte, conforme uma multidão de criaturas se atirava atrás do carro, saltando para um abismo de onde não mais poderiam sair.
Ainda restavam muitos, entretanto, mas eu estava perto. Ignorando a dor da queda, postei ambas as pistolas nas mãos, preparando-me para um embate de guerreiro, e corri. Corri ao meu limite, evitei disparar sem pensar. As munições eram contadas, eu sabia, teria de preservar para o momento em que tivesse de invadir a casa de Lilian.
Casa essa que, quando percebi, já estava em minha frente.

***

Meus pais devoraram a minha irmã até que nada restasse.
Logo após, avançaram na direção do guarda-roupa, debateram-se contra as portas de madeira, ferindo os braços e as cabeças mórbidas, lamuriando o pesar de suas fomes intensas. Eu estava com medo, mas o que poderia fazer? Não deixaria meu esconderijo por nada, nunca mesmo. Não seria devorada por meus próprios pais, como acontecera à minha irmã. Ficaria ali, escondida, até que ele chegasse.
Ouvi batidas na porta, ainda que o estrondo das pancadas no armário fosse muito maior. Então, um disparo, como uma explosão. Conhecia o som dos tiros de filmes e seriados, a realidade me assustou.
Depois disso, gritos.
Meus pais zumbis deixaram de me incomodar.
Havia uma nova vítima agora.

***

—Lilian! —eu gritava, olhando ao redor sem encontrar ninguém. —Lilian, onde você está? Lilian!
Olhei a cozinha, a sala, o quintal, tudo vazio. Nenhum sinal de destruição, muito menos da existência de uma pessoa.
Então avistei os pais de Lilian.
Sempre tive uma boa relação com eles, sabem. São bons pais, ainda que não fossem os melhores. Não tinham excelentes condições para oferecer à minha namorada, mas faziam o possível para que ela tivesse o melhor durante sua vida, fosse nos estudos ou mesmo no conforto de seu lar. Aceitaram-me de bom grado no início do namoro, e também me apoiaram nos meus sonhos, nas minhas vontades, diferente da concepção de sogro e sogra obtida pelo restante do país. Eram bons pais, tinha certeza disso, e bons amigos para mim também. Mesmo durante as crises de nosso namoro, eles sempre estiveram ali para nos apoiar, para dar conselhos, para oferecer ajuda.
Senti um pequeno desgaste em nossa relação quando ambos saltaram sobre mim, famintos, gritando pela praga que os assolava.
Chorei, mas preparei as pistolas.
Descarreguei-as.

***

Tiros, outra vez, e então silêncio.
Nada de gritos, nada dos gemidos angustiantes dos meus pais, nada de nada. Apenas silêncio, e ele machucava mais do que o som. Senti o cheiro de sangue, de morte. Senti fome.
Minha cabeça parecia girar no lugar.
Abri as portas que me escondiam.
—Thomas —tentei falar, mas minha voz não saiu. Ou talvez tenha saído, mas soou muito diferente do que imaginei.
Cambaleei para fora de meu quarto, enroscando o pé na ruína do corpo de minha irmã, do que restara dela após a fome de meus pais. Apoiei-me nas paredes, ouvi choro. Abandonei aquele cômodo com uma estranha dor no peito, mais precisamente no coração. Talvez ele deixasse de funcionar, mas eu não percebia mais nada.
—Thomas...
Ele estava lá, chorando sobre os corpos sem vida dos meus pais, choramingando pela dor da morte que ele trouxe. Ainda que, na verdade, não fosse ele o responsável pela morte dos meus pais, mas sim o herói que os libertou daquela doença.
O herói que viera para me salvar.
O meu herói.
—Thomas...
Ele apontou uma das armas para mim, assustado. Súbito, deixou que ela caísse, sem forças para continuar. Chorou, gritou, esperneou em sofrimento.
—Não, Lilian, não pode ser!
—O que foi, Thomas?
Percebi que ele não me escutava.
Só então entendi o que estava acontecendo.
—Não pode ser, Lilian, eu não quero acreditar nisso.
Ele se levantou, caminhou até mim. Ergui meus braços, estudei-os. Estavam pútridos, como se em decomposição.
—Thomas, eu te amo...
Minha voz era nada além de um gemido tortuoso, uma angústia cuspida por lábios ressecados e cinzentos.
—Lilian, por quê? Por que isso tinha de acontecer? Por que você?
Eu era um deles. Um zumbi.
Minha fome me controlava, e logo eu mataria Thomas.
—Me desculpe.
Ele não me escutava.
—Eu não quero viver num mundo sem você, Lilian.
Olhei para sua perna, sangrava. Ele fora ferido no enfrentamento de meus pais. Já estava infectado, provavelmente.
—Thomas.
—Lilian, eu te amo.
Me alcançou num abraço apertado, senti o calor de seu corpo me esquentar por segundos.
—Eu também te amo, Thomas.
Mas era um gemido, e nada mais.
Eu senti vontade de abraçá-lo, de gritar em seu ouvido o quanto o amava, o quanto senti saudades de seu conforto, de seu corpo encostado no meu, de seu amor quente. Senti vontade de muitas coisas.
Mas a fome era a maior de todas.
—Eu também te amo, Thomas.
Então o mordi, e o calor de seu corpo desapareceu, selando nosso amor.

Ficaríamos juntos para sempre.



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