Capítulo 1 - Correr sem olhar pra trás


Trilha sonora não-oficial


Os filhos da mãe parecem sentir meu cheiro.

Assim que desligo a lanterna, os três vem até o freezer e começam a rodear, arranhando a tampa e grunhindo como bichos. Às vezes, chego a pensar que posso entender o que "dizem". Deve ser muito triste essa pseudovida a qual foram entregues sem chance de escolha, confinados a vagar sem rumo por um mundo destruído, banhado por sangue e carniça. Tão triste quanto a minha se tornou, sendo obrigado a seguir em constante fuga e dormir de olhos abertos para não me tornar um deles. Então me lembro de como são capazes de destroçar mulheres, homens e até crianças com a maior naturalidade do mundo, como se fosse normal, como se fossem criados por Deus. Tiro a ideia da mente. Nunca poderia entender a "língua" deles.

Sobre Deus: ainda acredito Nele, na medida do possível. O respeito, O temo e rezo pra Ele. Já me deparei com sobreviventes que O culpavam pelo que está acontecendo, por todo o caos. Será Deus mesmo o culpado? Ou seremos nós, que atraímos esse inferno? Na minha opinião, ninguém é inocente. Eu não sou; você, meu possível leitor, também não é. A inocência foi perdida há muito tempo. E quando se perde a inocência, desista de encontrá-la novamente.

Por sorte o freezer está desligado, caso contrário eu já teria virado sorvete. Aliás, energia elétrica é algo que não se vê muito por aqui. São raros os lugares ainda abastecidos por eletricidade. Esse, pra minha sorte, não está na lista. Estou aqui dentro há um bom tempo, cercado pela carne apodrecida que sobrou em estoque. O cheiro é insuportável, mas é minha única opção. Assim que abri os olhos me dei conta de que estava cercado pelos infelizes.

Acendendo novamente a lanterna – que já começa a falhar –, procuro algo que possa me ajudar, embora ache difícil sair daqui usando carne apodrecida... Um buraco. Não é grande o suficiente para eu passar, mas, quem sabe, para distraí-los. Me contorcendo, sinto a pele do braço nu roçar em algo gosmento, reprimindo os lábios para evitar qualquer som de asco. O cuidado é pouco, pois faço um breve barulho, o que os deixa agitados. Deixam de arranhar para começar a esmurrar. Será que essas coisas sabem abrir tampas? Bom, não serei eu a ensinar.

Olhando pela passagem de ar, onde outrora devia ser o aparelho que gela o freezer (sou um péssimo conhecedor de eletrodomésticos), consigo ver os malditos por um espelho no teto. Vejo apenas suas costas,  ensangüentadas, as roupas em trapos. Logo o freezer é manchado por respingos do sangue que escapa de suas bocas. Parecem concentrados demais na tampa para perceber meus movimentos na lateral. Pego um pedaço de carne, passo o braço pela passagem e, num arremesso, jogo-a atrás do balcão. Pelo espelho, vejo os três se virarem num repente e seguirem para onde a carne caiu. Minha chance.

Cautelosamente, empurro a tampa pra fugir o mais rápido possível... Mas... O quê? Esse bando de carniceiros deve ter travado a tampa ao esmurrá-la. Empurro, empurro, e nada. Não acredito. Minha vez de esmurrar. Levanto com dificuldade, atrapalhando meus pés em meio ao aglomerado de carnes e forço a tampa. Com três fortes pancadas usando meu ombro, consigo abrir.

Engulo ar fresco num milésimo de segundo. Não há tempo nem para respirar. O barulho das pancadas os atraiu novamente. Eles possuem um reflexo fora do normal, e nem hesitam antes de atacar. Só tenho tempo de subir na lateral e me jogar por cima deles, caindo num landing, rolando e correndo logo em seguida pela porta, fechando-a numa pancada, pelo menos para atrasá-los um pouco.

Nunca pensei que minhas habilidades no parkour me ajudariam a sobreviver dessa forma. Quando minha vida ainda era normal, treinava bastante. Adorava escalar árvores, muros, dar saltos cada vez mais altos. Cheguei até mesmo a publicar alguns vídeos na internet. Puro exibicionismo. Hoje é uma arma para sobreviver. . Correndo pela rua afora, vou desviando de carros batidos, corpos em decomposição nas sarjetas, lixo por todos os lados, enquanto ouço gritos ferozes e passos rápidos atrás de mim. Jaboticabal, cidade no interior de São Paulo, está completamente tomada pela morte. Os mais de setenta mil habitantes foram esquecidos pelo resto do mundo. Cada uma das ruas está manchada com pelo menos uma poça de sangue. Não se vê mais pássaros no céu. Os animais fugiram antes de serem devorados. Instinto humano é uma merda.

Mantenho o pique, correndo sem vacilar, me concentrando nas árvores do parque lateral do Ginásio de Esportes. Corro e, a cada esquina que venço, mais gritos se somam aos anteriores. Até chego a gargalhar num certo momento, um gargalhar alto, descontrolado. Mas não perco o fôlego. Faltando poucos metros até minha meta, respiro fundo, mantenho o foco... E subo, utilizando o wall run, apenas com um impulso do pé direito contra a madeira.

Em questão de um segundo, estou em cima da árvore. Grande, antiga, com as raízes grossas e apodrecidas. Galhos se quebram e caem sobre o grande grupo de canibais que se aglomera ao redor. Permanecem grunhindo e apontando suas mãos assassinas em minha direção. Alguns tentam se apoiar mais acima, mas a coordenação é prejudicada pelo desespero em me alcançar. Minha sorte.

No começo isso me assustava, mas agora faz parte do meu cotidiano. Correr, ficar sem fôlego, não olhar mais pra trás. Assim é a minha vida agora. Não que eu tenha me acostumado. Ninguém se acostuma com assassinos loucos à espreita, só estou mais conformado.

Me recosto num galho forte e respiro calmamente sem tirar os olhos dos malditos, enquanto as batidas cardíacas voltam ao normal. Pegando minha mochila, abro o zíper e procuro algo pra comer. Ainda há algumas bananas, bem maduras. Duas estouraram e transformaram o interior da mochila numa meleca total. Odeio quando isso acontece. Apenas um dos meus três squeezes tem água, pela metade. Reviro o interior da bolsa, sabendo que não há mais nada. A fome machuca meu estômago. Não como comida de verdade há um bom tempo. O ar fétido tomou conta de qualquer resquício de alimento aproveitável que tenha restado. No ginásio talvez possa encontrar água, pelo menos. Bebo o que me resta, aliviando minha garganta, mais seca do que a pele dos infelizes que esperam para me devorar.

Depois de sentir a última gota d'água, raspo a mão por dentro da mochila e pego as bananas podres amassadas. Não posso desperdiçar. Mastigo devagar, tentando encontrar um meio de chegar a salvo no ginásio.




14 mordidas:

Thaís V. Manfrini disse...

O senso "tragicômico" torna a coisa mais cativante aqui ao fim.

28 de agosto de 2008 às 16:37
Carlos disse...

Muito bacana, uma leitura rápida e direta.

26 de setembro de 2008 às 17:50
Rodrigo disse...

Waaaaaaahh~~

COntinuaaaaaH

22 de outubro de 2008 às 19:26
Tayná Tavares disse...

OMFG!! Se eu tivesse que correr pra sobreviver, tava morta a muito tempo.. Mas como isso aconteceu?!! Vou ler...

17 de fevereiro de 2009 às 03:48
Anônimo disse...

talvez depois, mais pra frente explica como começou os mortos-vivos

22 de fevereiro de 2010 às 14:29
Anônimo disse...

Muito bom o primeiro capítulo! Amo histórias de zumbis!! Parabéns pela escrita!

12 de outubro de 2010 às 20:57
UK disse...

cara muito bom...parabens

30 de outubro de 2010 às 00:47
Heinz Eduardo disse...

cara veio tava procurando uma historia boa de zumbis assim a anos sempre me falavam do terra morta mais nunca achei ate ke te achei no blog de outro e estou amando

11 de março de 2011 às 03:51
Anônimo disse...

Acaba de ganhar mais um leitor *-*

27 de abril de 2011 às 17:50
Pedroflumi disse...

até agora só li a introdução e adorei!! acaba de ganhar mais um leitor

10 de junho de 2011 às 22:38
Juba DAzvdo disse...

Uau!!!!
Você escreve muitíssimo bem mesmo, consigo vizualizar toda a cena perfeitamente. A descrição é bem dinâmica se fundindo a historia de tla forma que nem se dá conta.
Indo para o proximo.
Bjuxxxxx

22 de junho de 2011 às 03:53
Jefferson Reis disse...

Estou gostando =]

5 de agosto de 2011 às 04:39
Elisandra Eccher de Andrade disse...

Nossa, parecia que estava lá. Sabe sentir o gosto de banana madura demais me da certo mau estar....kkkk...fazia tempo que não sentia isso lendo um livro...meus parabéns!!!!

Beijokas Elis
A Magia Real

13 de setembro de 2011 às 11:56
Priscila Monteiro disse...

Fantástico!!

9 de janeiro de 2013 às 15:37

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