[Terra Morta RPG] Capítulo 1 - Beatriz


Tudo estava aparentemente calmo. Há horas não ouvia um só ruído vindo do lado de fora. Já passavam das quatro da madrugada, e tudo jazia emerso no breu. Sob seu comando, o cabo da antiga vassoura usada para varrer a farmácia, uma simples garrafa d’água e o kit de enfermagem que sempre estivera guardado no cômodo dos fundos.
           

Tentando fazer o mínimo de barulho possível, Bia seguiu até a porta que, após todos aqueles dias, seria destrancada pela primeira vez. Preferira não se arriscar tanto e, devido a isso, trancou-se na farmácia de seu pai, onde costumava trabalhar antes de tudo aquilo acontecer. Conseguia se lembrar como que ontem.
Os primeiros ataques. As primeiras mortes.
Primeiras de muitas que estavam por vir.
Agira de maneira correta, afinal. Continuava viva, um luxo do qual muitos não puderam desfrutar. Mas os poucos mantimentos que a mantiveram firme durante todo aquele tempo estavam, agora, se esgotando, e era questão de tempo até que não pudesse mais permanecer trancada naquele lugar.
            Por isso havia tomado aquela decisão. Sairia dali naquela noite, e tentaria usar a própria madrugada como camuflagem para que conseguisse chegar até sua casa que, aliás, não ficava assim tão longe. Respirou fundo, tomando coragem, e abriu a porta antes que voltasse atrás em sua decisão.
         
            Estava tão escuro, lá fora, quanto dentro da farmácia.
            Olhou para os dois lados, apenas para se certificar que eles não estavam por ali, à espreita. Nada. Nenhum sinal dos mortos andantes. Deu os primeiros passos em direção ao centro da rua, distinguindo então oque pareciam ser as silhuetas de alguns carros, acidentados ou simplesmente abandonados em locais aleatórios em meio a toda aquela destruição.
            Sua maior preocupação, no entanto, era onde pisar. Fazia o possível para evitar os entulhos e dejetos espalhados pelo asfalto, qualquer barulho desnecessário entregaria sua localização.
            Tudo estava quieto. Poderia ser um bom sinal, aquele, ou não.
            Mas a resposta veio da pior maneira; após alguns passos, um mísero descuido fora o suficiente para que uma lata de refrigerante, sob seus pés, rolasse até o acostamento. Bia parou de estalo, olhando em todas as direções em busca de qualquer sinal de perigo.
            Então os viu deslizar para fora das sombras, vindos de um pequeno beco não muito longe de onde estava. Eram dois. Usavam roupas tingidas pelo vermelho de seu próprio sangue, e avançaram sem hesitar num só momento. Grunhiam feito animais, e pareciam ser tão rápidos quanto.
            A moça pensou em voltar, mas tinha ido longe demais para isso. Era sua única chance, e optou por agarrá-la nem que aquilo lhe custasse mais do que poderia suportar.
            Então correu. Correu como nunca em sua vida. Um quarteirão a separava de sua casa, e não pretendia parar até que alcançasse seu destino. Seguiu em frente, no escuro, guiada apenas por seus próprios instintos e a vontade de permanecer viva.
            Quanto mais avançava, mais e mais gritos se assomavam aos primeiros. Não era necessário olhar para trás para saber que, não mais dois, porém no mínimo três vezes mais daqueles canibais a perseguiam. Mas não desistiria. Não permitiria a si mesma tornar-se uma daquelas malditas coisas na qual todos pareciam ter sucumbido.
            Não demorou para que distinguisse o muro branco que limitava as propriedades de sua residência. Não tinha a chave de casa, mas não se precipitaria em verificar se a porta estava aberta. Não mesmo. Sem pensar suas vezes, correu em direção à parede e saltou o mais alto que pôde.
            Sentiu seus dedos se firmarem sobre o parapeito do muro, e usou de toda a força da qual dispunha para puxar o próprio corpo para cima, rápida o suficiente para evitar os inimigos que, àquela altura, estavam tão perto quanto ela jamais ousaria desejar.
            Sentiu o impacto do próprio corpo sobre a terra, do outro lado.
            Estava em segurança. Pelo menos por enquanto. Dali, podia ouvir os gritos ensandecidos de seus perseguidores, unhando e esmurrando o muro, do outro lado, frustrados por terem deixado a caça escapar. Azar o deles.
            Levantou-se e olhou ao redor, sem conseguir enxergar muito além de onde estava. Limpou a poeira sobre suas roupas, e só quando decidiu entrar é que deu por falta o cabo de vassoura que estava consigo. Provavelmente deixara cair durante a fuga.
            – Ao menos escapei – murmurou.
            Encontrou a porta da cozinha aberta. Branca, possibilitou que distinguisse manchas tão negras quanto o céu àquela hora da madrugada. Provavelmente sangue. Sentiu-se envolver pelo aperto frio do medo, e teve receio em entrar. Teria seu pai conseguido se manter vivo durante tanto tempo, assim como ela? Se sim, de quem era aquele sangue? Teria de descobrir por si só.
            Bia abriu a porta com cuidado, evitando fazer mais barulho do que o necessário.
            Viu-se no corredor que levava à cozinha de sua casa. O cheiro não era dos melhores, e não demorou para que enxergasse o sangue no chão; um longo rastro já seco que seguia adiante, desaparecendo na penumbra.
            Assim que deu o primeiro passo, um ruído chegou aos seus ouvidos. Havia alguém na cozinha. Tentando não ser vencida por seus próprios temores, Bia respirou fundo e seguiu em frente  com cautela redobrada. Abriu uma pequena brecha na porta seguinte, espiando o cômodo em busca de qualquer sinal do invasor.
            Mal teve tempo de se defender quando a porta se escancarou com um baque e o sujeito se jogou contra seu corpo, prensando-a contra a parede. Tratava-se de um rapaz bastante jovem, seu braço esquerdo expondo uma mácula pútrida e coberta por uma camada mal cheirosa de pus.
            Era bastante magro, o que facilitou para que a moça o empurrasse no momento em que o inimigo arriscou a primeira mordida em direção ao seu pescoço. Correu para a cozinha ao som do urro encolerizado de seu agressor, que partiu em seu encalço.
            Tentando ser mais rápida que o outro, Bia tateou a mesa em busca de qualquer coisa que pudesse usar para se defender. Sentiu seus dedos se fecharem em torno de algo comprido e gelado, o qual usou sem hesitar no momento exato em que o morto-vivo a alcançava.
            O som do impacto da frigideira contra crânio ecoou pela cozinha.
            Vencido, o inimigo desmoronou no chão frio.
Repugnada, Bia largou a frigideira, agora amassada, sobre a mesa, e deixou-se sentar em uma das cadeiras, ofegante.
            Pensou em seu pai. Sentiu os olhos se enchendo, mas em momento algum pensou em deter as lágrimas, que deslizaram por seu rosto claro, livres. Um gemido abafado fez-se ouvir, então, no segundo andar da casa, chamando sua atenção.
            Levantou-se e apanhou novamente sua arma improvisada. A porta seguinte levava à sala de jantar. Surpreendeu-se ao descobrir que o rastro de sangue, vindo do corredor, seguia incessante até os primeiros degraus da escada, na extremidade do cômodo.
            Subiu em silêncio. Degrau por degrau. E na metade do percurso voltou a ouvir o estranho gemido, dessa vez mais perto. Queria acreditar na possibilidade de suas suspeitas estarem erradas. Mas quanto mais avançava, a imagem de seu pai tornava-se cada vez mais forte em sua mente. Temia que fosse ele. Desejava que estivesse bem, que de alguma forma aquele sangue não o pertencesse. Recusava-se a acreditar no contrário.
            Os últimos respingos de sangue seco levavam até a o porta de seu quarto.
            Receosa, girou a maçaneta, rezando para que a sorte lhe sorrisse uma vez mais.



O texto acima não tem qualquer vínculo com a história original de Terra Morta e nem foi escrito por Tiago Toy. É uma adaptação do RPG mestrado no Orkut por Luan Matheus, escrita pelo próprio.

2 mordidas:

Pedro disse...

Nossa, como seus enredos estão mais diagramados por assim dizer.

Parabéns muito bom.

15 de agosto de 2012 às 08:21
Tiago Toy disse...

Os capítulos referentes a Terra Morta RPG são de autoria do Luan Matheus, como informei nesse post: http://terra-morta.blogspot.com.br/2012/08/terra-morta-rpg.html

Parabéns ao Luan!

15 de agosto de 2012 às 15:05

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