Heroína, o primeiro spin-off de Terra Morta

Como você deve saber, em breve a editora Draco lançará a coletânea Terra Morta - Relatos de Sobreviventes (título provisório). Trata-se de um livro com contos escritos por leitores e autores baseados no universo de Terra Morta. O livro contará também com um ou dois contos meus, e não será a primeira vez que escrevo algo paralelo aos eventos de Fuga.

No ano passado a Draco lançou Fantasias Urbanas, organizado pelo Eric Novello, meu copidesque favorito.  Fantasias Urbanas é uma visita guiada a mundos fantásticos muito diferentes entre si, mas todos com um ponto em comum: a união entre entretenimento e qualidade. Os destinos incluem encontros com reis, castelos e magia; visitas a necromantes vindos de Atlântida; julgamentos em sociedades movidas a vapor; fugas no meio de tiroteios, metamorfos e leões gigantes; paradas para descansar em uma cidade prisão com um homem-morcego e seu rei-máquina; tensões entre um casal em crise no meio de um apocalipse zumbi; descobertas de um mundo tomado por deuses, múmias e vampiros; e rituais sombrios de revirar as entranhas, tudo isso para para proporcionar uma excelente viagem.

O negrito não está ali por enfeite.

Heroína é meu conto em Fantasias Urbanas. Passado antes do início de Terra Morta: Fuga em uma cidade no interior de São Paulo, prova que também há espaço para o amor em uma pandemia zumbi. É um drink aos amantes de histórias românticas e de zumbis, mas sem apelar para a água com açúcar. Está mais para água infectada, com uma pitada de algo doce e, ao mesmo tempo, amargo.

O conto está à venda na Amazon em versão digital por apenas R$2,99. Com a certeza de que vai agradar a todos os fãs de Terra Morta - e de zumbis em geral -, libero abaixo as primeiras páginas. Deleite-se!



A escuridão abafada veio como um tapa na cara.
Sua pele estava fria. A boca seca, os lábios rachados. As costas doíam como se estivesse deitado no piso de madeira há dias. O latejar nas têmporas parecia a contagem regressiva de uma bomba-relógio, o cérebro explodiria a qualquer momento.
A sensação de vazio no estômago machucava. Ao levantar-se, sentiu terra sob as palmas. Após dois tombos às cegas, firmou-se de pé. Se alguém dissesse que servira de chão de estábulo para cavalos descontrolados não duvidaria.
Entre passos e tropeços perdidos, alcançou a parede, um apoio. Girou ao redor na esperança de descobrir um rumo. Nenhuma mísera linha de luz. Tateando a superfície lascada, contornou alguns obstáculos até chegar ao seu destino. Alisou o metal gelado, um ligeiro choque subiu pelas pontas dos dedos. Num ímpeto, escancarou a porta. O odor azedo invadiu as narinas. Um palavrão escapou e perdeu-se no escuro. A luz de esperança viria da geladeira, caso houvesse energia, o que não era o caso. Por mais corajoso que fosse, começava a pairar uma sensação angustiante de claustrofobia. Precisava enxergar.
Continuando seu trajeto com as mãos na parede, descobriu a porta. Girou a maçaneta uma vez. Outra. Estava trancada. Chutou a base repetidas vezes e parou quando sentiu a chave. Tremendo de fome e de algo semelhante a medo, a girou e puxou a porta num ímpeto, atirando-se para fora.
Respirou fundo a brisa abafada da noite. Os postes sem luz e o céu sem estrelas não eram grandes aliados, mas conseguiu entender o cenário. O cortiço estava deserto. Som algum existia ali além das batidas aceleradas de seu coração e dos eventuais estalos dos ossos ao girar procurando alguém.
Chamou e não obteve resposta. Andou pelo cascalho até o portão de madeira velha tombado e passou sobre ele. O corredor estava morto. Poderia ser madrugada e todos estarem dormindo, mas não era isso. Algo pior acontecera, um mau pressentimento o dominava.
Um grito. Longe e perto demais. Uma voz masculina pedindo ajuda. Seguiu pela estreita ruela do cortiço até a saída, os pedidos de socorro morrendo antes que ele alcançasse seu objetivo. Em frente ao cortiço havia uma enorme rotatória de grama mal cuidada que levava à estrada principal da cidadezinha. Era um lugar afastado de tudo, mas nunca estivera tão abandonado. Meia dúzia de viaturas policiais e um caminhão de bombeiros. Todos abandonados. Uma maca manchada de sangue jazia tombada na parte de trás de uma ambulância. Duas luzes de alerta permaneciam ligadas, banhando de vermelho e azul o ambiente ao redor. Quem quer que tivesse gritado não estava mais ali. Estava morto. Ele tinha certeza disso.
Num estalo, não sentiu mais nada. O medo, a fome, a sensação de estar em um pesadelo. Nada mais importava. Deu meia volta e correu até sua casa. Com a visão acostumada, conseguiu situar-se melhor e foi direto ao seu quarto. Tropeçou em algo que não fez questão de identificar e continuou. O celular estava sobre sua cama, a bateria quase no zero. Seu coração a mil.
Havia cinco ligações perdidas dela.

Seus olhos ardiam e as letras pareciam formigas alvoroçadas na página do livro. Não conseguiria se concentrar nem que disso dependesse sua vida, estava demasiado ansiosa. Tentava ler apenas para passar o tempo, pois encarar o ponteiro do relógio só fazia prolongar a espera.
Da janela viu a primeira estrela no céu púrpura. Ao sentir o mais leve resquício de sonolência, fechou o livro e se espreguiçou. Caiu no edredom rosa e abraçou uma almofada de pelúcia em formato de coração. Sentia que o sono viria num pestanejar, os olhos lacrimejando, mas ainda assim pegou o controle remoto no criado-mudo e ligou a TV. A imagem estava péssima. Trocou, nenhum canal funcionava e desligou. Decidida a dormir com algum barulho, ligou o iPod e sintonizou na rádio. Sob chiados, reconheceu algumas palavras e só continuou a tentar ouvir por que o bairro dele havia sido mencionado.
Nos trechos entrecortados pela interferência ela entendeu que algo estava acontecendo na entrada da cidade e que o bairro dele, próximo à estrada, havia se transformado em um campo de guerra. Uma contagem absurda de mortos foi anunciada e o sono fugiu, dando lugar a uma preocupação dilacerante. Era algo grande como nunca ocorrera.
Num pulo da cama, alcançou o celular sob o criado-mudo e tocou a foto dele na tela inicial. Chamou por meio minuto até cair na caixa postal. Tentou novamente, as mãos trêmulas. Alguém atendeu. Não esperou muito e foi logo perguntando por ele. A ligação estava ininteligível, porém conseguiu reconhecer a voz de sua sogra. Ela pedia socorro e a ligação caiu. Tentou outra vez, mas desta vez estava desligado. Sentiu o nó amargo em sua garganta aumentando até explodir em lágrimas.
Correu até a janela e viu o alvoroço na rua. Os vizinhos todos curiosos fofocando na calçada, outros partindo em seus carros. Esticando-se pra fora, viu luzes de um tráfego louco no centro da cidade. Da esquina do quarteirão, um carro surgiu a toda velocidade, alarmando os pedestres. A buzina tocava continuamente e o veículo não fazia menção de parar. Duas senhoras que futricavam no meio da rua não conseguiram ser rápidas o suficiente pra escapar do atropelamento. A pancada de uma das carolas arrebentou o parabrisa e originou o acidente seguinte. O carro, desgovernado, bateu na guia e arrebentou a grade de uma das casas, girando pela calçada. Foi rápido demais para que as pessoas no caminho tivessem tempo de se salvar.
O choque para os que estavam do outro lado foi tanto que não houve reação exceto gritar. O automóvel só parou de capotar ao bater em um poste de concreto, deixando uma trilha de destroços metálicos e humanos. Da janela ela viu a filha de sete anos da vizinha no asfalto. Os espectadores correram para ajudar. Da rua de onde o carro assassino surgira uma frota de outros veículos disparava à direção contrária. Estavam fugindo. Ela não conseguia se mover. Nunca presenciara um acidente na vida. Uma coisa era ver na TV. Outra era acontecer em frente a sua casa.
O chamado de um homem alertou a existência de um sobrevivente dentro do carro. Parecia impossível ter restado alguém, mas foi o que aconteceu. A porta amassada do carona, virada pra cima, era pressionada pelo lado de dentro. Quem quer que fosse, estava desesperado, pois não teve dificuldade em derrubar a lataria.
O sangue o cobria quase que completamente. A curiosidade humana sempre foi maior do que a preocupação sincera pelo próximo, e foi o que levou a maioria das pessoas ao redor do carro. A aglomeração deve ter irritado o sobrevivente, pois ele pulou sobre um homem e sem explicação o atacou. Estava machucando-o. Mordendo seu braço. O círculo de curiosos rapidamente se dispersou e o louco largou a primeira vítima para atacar os mais lentos. Os gritos aumentaram e a correria começou. Parecia um leão abatendo um bando de cervos. O mais estranho não era o homem ter sobrevivido ao acidente ou atacar as pessoas a mordidas e socos aleatórios, mas o fato de o primeiro mordido se levantar e acompanhá-lo nas agressões. E mais estranho ainda as novas vítimas mordidas logo se juntarem ao ataque. Pareciam possuídas por demônios canibais. Mordiam sem ver a quem. Crianças, mulheres, velhos. Poucos conseguiram escapar e se trancar em suas casas.
Ela demorou a se recobrar e perceber estar sendo observada por dois de seus vizinhos, agora com os dentes expostos como animais. Foi só quando eles começaram a tentar escalar a grade do jardim que ela fechou a janela. Mais rápido do que achava ser capaz, tirou o short rosa do baby-doll e vestiu um jeans e os tênis. Pegou o celular e o guardou no bolso apertado, descendo a escada de dois em dois degraus. Pelo olho-mágico da porta da frente enxergou os vizinhos que continuavam no portão e a confusão ainda viva na rua. Correu para a cozinha e pegou a faca maior, um cutelo, derrubando o cepo da bancada. Não se preocupou em recolher as lâminas espalhadas pelo chão de mármore branco, abriu a porta dos fundos e saiu. Seria fácil passar pelo muro.
Estava indo atrás dele.


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O conto Heroína pode ser lido em tablets, e-readers e PCs/Mac. Para comprá-lo, acesse o link http://www.amazon.com.br/Fantasias-Urbanas-Heroína-ebook/dp/B00BH18SWS

4 mordidas:

Anônimo disse...

Instigante, como tudo que você escreve, Toy. Vale muito mais que 2,99. Não vou comprar o Fantasias pq o único autor que me interessa ali é você, então obrigada por liberar seu conto avulso. Felicidade e continue escrevendo coisas perfeitas. <3

Julie T.

15 de março de 2013 às 02:13
Unknown disse...

Uau, que começo mais desesperador e eletrizante. Impossível começar a ler e não querer continuar. A maneira como vc descreveu o início da epidemia (início aos olhos dos infelizes - ou felizes? - espectadores) foi perfeita: "O mais estranho não era o homem ter sobrevivido ao acidente ou atacar as pessoas a mordidas e socos aleatórios, mas o fato de o primeiro mordido se levantar e acompanhá-lo nas agressões. E mais estranho ainda as novas vítimas mordidas logo se juntarem ao ataque". Demais! Pena que vou ter que esperar até semana que vem (qd meu pc novo chegar)!! :(

15 de março de 2013 às 02:23
Marcelo Janios disse...

Comprei o Fantasias Urbanas e gostei muito dos contos, principalmente do seu. Adoro os flashbacks nas histórias, em Terra Morta, e vc sabe usa-los com maestria. Espero ver mais trabalhos seus em breve. Estou ansioso pela continuação.

15 de março de 2013 às 16:44
Ayesha disse...

Ahhhhh!!! Faz tempo que eu não venho aqui! Ainda dá tempo de escrever um relato de sobrevivente pra participar??? #sofro!

21 de março de 2013 às 19:22

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