[Terra Morta RPG] Capítulo 14 - Johan
Dispunham apenas da luz da
lanterna para enxergar ali, nos esgotos da cidade.
Amy
e a irmã caçula não diziam palavra desde que começaram a explorar os túneis,
mas Beth, por sua vez, não parava de reclamar consigo mesma; ora se queixava do
fedor, ora da escuridão, e não poupava esforços para gritar quando avistavam um
rato – que, aliás, pareciam estar por toda parte.
Em
seus quarenta e tantos anos, a mulher era bastante gorda, com os cabelos
escuros presos num rabo de cavalo que balançava para lá e para cá enquanto se
esforçava para caminhar sob roupas que visivelmente não lhe serviam bem. Johan
se perguntava como ela conseguira sobreviver durante tanto tempo.
Já
Amy... É linda, havia pensado, na
primeira vez que a viu. Seus cabelos eram de um louro pálido, como areia,
emoldurando o rosto enquanto desciam até abaixo dos ombros. Tinha a pele
bronzeada e os olhos, verdes, dotados de um olhar profundo, desafiador. A irmã
mais nova, Ana, era um reflexo da mais velha em seus nove anos de idade.
A moça o havia salvo durante sua fuga da escola;
correra tanto quanto podia, mas os malditos canibais pareciam não se
cansar de persegui-lo. Quase chegou a
ser pego, num momento, quando em um ato de desespero saltou para cima do muro
de um terreno baldio, torcendo para que o portão ao lado estivesse trancado...
...
mas não estava! Invadiram o lugar assim que Johan aterrissou do outro lado,
espalhando-se como vespas, para todos os lados, enquanto tentavam alcançá-lo.
Só
então se deu conta de que se repetisse o processo, parte deles ficaria presa
ali e, assim, teria a chance de escapar. Mas quando o fez, viu-se em uma rua
diferente da qual usara antes. Havia inimigos em todas as direções. Todos se
viraram, e sentiu no corpo o peso de todos aqueles olhares insanos, famintos
por morte. Seus grunhidos se somaram uns aos outros quando investiram em sua
direção, e por um momento achou que tudo estivesse acabado. Mas então a ouviu
gritar.
–
Você aí! Venha por aqui, rápido!
Mal
acreditou quando avistou a loira do outro lado da rua, em um beco, acenando
para ele. Conteve a gargalhada que ameaçou estourar em seus lábios e, sem
pensar duas vezes, tratou de correr para lá.
Viu
a luz do dia ser engolida pela tampa do bueiro que se fechou sobre suas cabeças
quando desceram para os túneis de esgoto, e no momento seguinte não enxergava
mais nada além do mais puro breu.
–
Quem é esse? – ouvira uma voz feminina perguntar.
Quando
a lanterna se acendeu, descobriu que não estavam sozinhos.
–
Deu sorte, rapaz – Amy havia dito. – Estava prestes a descer quando os ouvi
gritando na rua. Sabia que não tinha sido vista, portanto minha curiosidade me
levou para lá a fim de saber o que estava acontecendo – em uma das mãos, Johan
reparou enquanto ela falava, trazia a lanterna. Na outra, um pé-de-cabra
enferrujado e manchado de sangue. – Não teria conseguido escapar deles, eram
muitos.
E
Amy tinha razão. Estaria morto, àquela altura, se não fosse por ela.
Calculava
que estavam ali embaixo a cerca de uma hora, talvez duas, mas para ele parecia
que o tempo se arrastava bem mais devagar do que desejava. Uma eternidade...
–
Vamos fazer uma pausa – Amy sugeriu logo após alcançarem uma bifurcação. Sentaram-se
ali mesmo, usando a parede de concreto como recosto. Ana abriu a mochila e distribuiu
alguns pedaços de pão e bolo amanhecido.
A
água carregada de dejetos seguia lentamente seu curso, logo ao lado, e o fedor
era tanto que chegava a embrulhar o estomago. Mas o seu, Johan concluiu,
literalmente doía de fome, e devorou o que lhe foi entregue sem reclamar.
–
Você ainda não nos contou sua história, Johan – ouviu Amy comentar ao seu lado.
–
Minha história?
–
É. Como sobreviveu durante esse tempo todo, antes de nos encontrarmos.
E
ele contou. Falou sobre a escola, sua fuga pelas ruas e o desespero que sentiu
ao pensar que morreria, algumas horas atrás. Em momento algum mencionou a
garota que deixara para trás. A garota que deixara para morrer.
–
E quanto a vocês? – quis saber quando terminou o relato.
–
Nos escondemos em um prédio durante vários dias – disse Ana, de repente. Era a
primeira vez que a ouvia falar qualquer coisa. – Mas então os monstros
entraram, e tivemos que fugir.
–
Éramos quatro – Amy explicou. – Por um tempo o lugar pareceu um bom lugar para
se esconder, e pretendíamos permanecer lá até que o governo ou o exército
enviasse ajuda. Mas, de alguma forma, os mortos conseguiram invadir nosso
refúgio, e nos vimos obrigados a sair de lá – fez uma pausa, e então completou:
– Os outros dois morreram na fuga.
Johan
olhou para Beth.
–
E quanto a ela? Não estava com vocês?
–
Oh, não, não – a própria tratou de responder. – As encontrei quando saía da
igreja.
–
Igreja?
–
“O Juízo Final chegou!” – Beth levantou a voz. – Era a frase que eu mais ouvia
nas emissoras de TV quando tudo isso começou. Diziam que estaríamos seguros em
nossas igrejas, mas não me atrevi a sair de casa nos primeiros cinco dias.
Quando o fiz, meu objetivo era chegar até a paróquia do bairro em que vivia –
umedeceu os lábios, então continuou. – Queria me salvar, por mais tola que
aquela ideia parecesse. Precisava acreditar em algo, manter minhas esperanças
vivas, sabe?
“Nunca
fui uma mulher religiosa, mas aquilo que vi mexeu comigo. Oh, sim! Não sei se
um dia conseguirei esquecer aquela cena. Havia corpos estirados por todos os
cantos, homens, mulheres e crianças. Crianças!
Todos com aqueles malditos olhos cegos, arregalados, encarando a morte.
“Nem
mesmo o padre escapou. Acredite, o filho da mãe me atacou quando me aproximei
do altar. Num momento observava todo aquele sangue a tingir os degraus de
vermelho, e no seguinte corria para longe dali com o servo de Deus em meu
encalço, louquinho por um pedaço de mim!”
Beth
olhou para Amy, que encarava a escuridão.
–
Amy deu cabo dele.
Um
silêncio desconfortável se seguiu ao relato de Beth.
Neste
meio tempo, uma grande e feia ratazana acinzentada se esgueirou para dentro da
área iluminada pela lanterna, farejando a comida. Arriscou alguns passos na
direção de Ana, os olhinhos negros e perversos focados no ultimo pedaço de bolo
que a menina segurava.
Ana
e Beth gritaram em uníssono, assustadas, quando a ratazana se aproximou ainda
mais. Amy se levantou com um pulo e, brandindo o pé-de-cabra, acertou o animal
que fugiu dali guinchando, voltando a desaparecer no breu.
–
Acho melhor irmos andando – Johan se levantou. As três repetiram o gesto.
Seguiram
em fila indiana: Amy na dianteira, seguida por Ana e Beth. Johan protegia a
retaguarda, embora arriscasse dizer que não encontrariam nenhum inimigo ali
embaixo. Descobriram que a primeira bifurcação levava a uma outra, e esta, após
um tempo, conduzia até uma terceira. Estamos
perdidos, pensou, ela não deve ter
noção nenhuma de para onde está nos levando.
Arriscou
perguntar:
–
Tem alguma idéia de para onde estamos indo, Amy?
–
Não – ela respondeu, direta. – Tenho em mente encontrar alguma escada que nos
leve novamente para a superfície. Ou, quem sabe, o fim desses túneis.
–
Entendo – disse ele com um suspiro desanimado.
Então
continuaram em frente, adentrando cada vez mais na escuridão. Não ouviam
qualquer som senão o dos próprios passos e o rumorejar da água que corria logo
ao lado. Permanecer ali, debaixo da terra, o incomodada, sim, mas enquanto
estivessem ali estariam seguros.
Ao
menos era nisso que se obrigava a acreditar.
O texto acima não tem qualquer vínculo com a história original de Terra Morta e nem foi escrito por Tiago Toy. É uma adaptação do RPG mestrado no Orkut por Luan Matheus, escrita pelo próprio.
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