[Terra Morta RPG] Capítulo 16 - Edmar



– Ficar com essa cara emburrada não ajuda em nada, garotão.
            Limitou-se a encará-la. Sharlene estava sentada sobre a mesa, no outro canto da sala, usando a lâmina de seu pequeno canivete para tirar a sujeira das unhas. Tinha a pele morena, e os olhos eram como duas obsidianas polidas. Usava os cabelos longos num rabo e cavalo, deixando pescoço e ombros à mostra. Suas roupas, bastante justas, delineavam com precisão as curvas perfeitas de seu corpo, e Edmar se pegava constantemente tendo pensamentos inadequados quanto á moça. Ah, não. São adequados o suficiente.
            – Por que está me olhando desse jeito? – Ela disse com um sorriso malicioso. – Será que quer um pedaço de mim, tal qual os mordedores lá fora?
            Quero, pensou, mas não chegou a dizer aquilo. Já não era a primeira vez que ela o provocava. Parecia se divertir com aquilo, embora nunca o fizesse quando Fred estava por perto. Eram eles que o haviam emboscado quando chegou ali; Fred não havia tirado a espingarda de seu rosto até que o visse devidamente preso, algemado contra uma barra de ferro fixa a uma das paredes, logo abaixo da janela. Havia cogitado a ideia de mantê-lo em uma das celas, no primeiro andar, mas por insistência de Sharlene, o outro o deixou ali mesmo.
            – Para que não tente nenhuma gracinha – ela tinha dito.
            E ali permaneceu durante o restante da tarde. Arriscava dizer que havia se passado um bom bocado de horas, a julgar pelo céu que escurecia cada vez mais. Ou será apenas a chuva chegando mais uma vez? Descobriu que era a chuva, de fato, quando ouviu a primeira trovoada, seguida da água dardejando o vidro da janela fechada acima de sua cabeça.
            Seu estômago doía, implorando por comida, mas ela lhe era negada. Nem mesmo seus dois carcereiros pareciam dispor de muitos mantimentos. Mas água não lhes faltava, e Sharlene tratara para que essa não lhe faltasse.
            Levantou os olhos. A mulata permanecia parada no mesmo lugar.
            – Sharlene – chamou.
            – Oh! Ele fala! – ela soltou um risinho. – Pois não, garotão?
            – Estou apertado – foi logo dizendo. – Preciso tirar a água do joelho.
            Aquele comentário arrancou uma longa risada da moça. Então a porta da sala se abriu com força.
            – Se depender de mim, pode se mijar nas próprias calças.  
            Fred entrou carregando a espingarda em uma das mãos. Era alto e corpulento, os músculos saltando por debaixo da camiseta. A barba escura e espessa lhe concedia uma aparência ainda mais ameaçadora, e tinha um dos braços cobertos por tatuagens.
            – Não seja tão mau com nosso amigo, Fred – Sharlene interveio.
            – Você, calada – rosnou o homem. – Vi como o tem olhado. Talvez a use como isca, assim como farei com ele quando sair daqui, amanhã de manhã. A menos, é claro, que eu seja recompensado – dito isso, levou uma das mãos até o meio pernas e apalpou o volume que carregava entre elas.
            Edmar a olhou, e viu Sharlene hesitar antes de responder.
            – Ou talvez eu te use como isca.
            Uma gargalhada gutural estourou nos lábios do homenzarrão. Parecia se divertir com a ameaça, mas Sharlene ainda mantinha um semblante sério e obstinado no rosto. Ela o despreza.
            – Vá, leve-o – Fred disse, sentando-se sobre a mesa que Sharlene ocupara ainda há pouco. – Mas se tentar alguma coisa eu juro que te mato, cadela.
            A mulata o libertou, mas voltou a prender suas mãos em seguida, dessa vez na frente do corpo. Com o canivete em mãos, ela o conduziu para fora da sala e através do corredor que levava de volta à escadaria do primeiro andar. Desceram em silêncio, o som de seus pés contra a madeira chamuscada dos degraus era tudo o que ouvia, com exceção da chuva lá fora que, até então, não mostrava sinal de clemência.
            Então, por alguma razão, resolveu falar.
            – Por que está com ele?
            – O que? – Sharlene pareceu confusa.
            – Fred – explicou. – Por que está com ele?
            Levou um tempo até que ela respondesse, e por um momento Edmar achou que não o faria.
            – Já fomos namorados, antes de tudo isso começar – ela disse enquanto o levava para um outro corredor, já no primeiro piso. – Durou uns dois anos, talvez um pouco menos. Entretanto já não estávamos juntos quando os mordedores apareceram e a cidade virou esse inferno – Sharlene parou em frente a uma porta e virou-se para encará-lo. – Por ironia do destino, Fred foi quem me salvou quando as coisas começaram a ficar feias, e tenho estado com ele desde então.
            Edmar começou a dizer alguma coisa, mas parou ao vê-la girar a maçaneta e empurrar a porta para dentro. – Chegamos – ela apontou para o lado de dentro. – Vá logo e faça o que tem que fazer.
            Sharlene também entrou no banheiro, mas o esperou do lado de fora das cabines enquanto ele se aliviava. Ouviu-a cantarolar alguma música, algum pop rock que lhe pareceu familiar, embora não conseguisse identificar de qual se tratava.
            – Mas você não gosta dele realmente, não é? – disse enquanto chacoalhava as ultimas gotas. – Tudo o que vejo é desprezo, quando você olha para ele.
            Quando abriu a porta da cabine, Sharlene o encarava, armada de um sorriso provocante.
            – Por que quer saber? – ela deu três passos em sua direção, até que estivessem a não mais que dois palmos um do outro.
            – Curiosidade.
            – Ah, é? – seu sorriso se abriu ainda mais, e ela levou uma das mãos até seu rosto, acariciando a barba por fazer. – Você me quer, garotão. Não quer?
            Foi a vez dele de sorrir. – E se eu dissesse que não?
            Sharlene fingiu uma careta de desapontamento e, sem cerimônias, levou uma das mãos até entre as pernas de Edmar. Voltou a sorriu quando o encontrou duro.
            – Diria que seu amiguinho discorda.
            Mordeu os lábios e empurrou contra a parede, e as mãos voltaram a roçar na barba dele. Edmar estava ofegante. Ansiava por acariciar-lhe o corpo, sentir cada curva, beijar sua pele morena e possuí-la ali mesmo. Sharlene aproximou os lábios dos dele, roçando um no outro, provocante.
            Então ela começou a rir, e voltou a se afastar.
            Edmar lançou-lhe um olhar inquisitivo, sem entender o motivo pelo qual ela havia parado o que estavam fazendo. Tentou se aproximar e puxá-la de volta para si, mas as algemas dificultaram, e Sharlene não viu problemas em se esquivar.
            – Hoje não, garotão – disse ela. – Fred notaria nossa demora e mataria a nós dois se descobrisse o que estamos fazendo aqui embaixo.
            – Eu não me importo – aquela sensação de perigo o excitava ainda mais.
            – Eu, sim – Sharlene resmungou, afastando-o quando ele tentou se aproximar mais uma vez. – Teremos outras oportunidades, prometo. Mas não agora.
            Edmar protestou, mas de nada adiantou. Contentou-se em observar seu andar sensual até a porta do banheiro, e então a seguiu. Os dois não voltaram a se falar enquanto voltavam para a sala no segundo andar, mas enquanto subiam as escadas, Sharlene parou e se debruçou sobre o corrimão para que pudesse espiar o lado de baixo.
            – Que barulho foi esse? – sussurrou.
            – Não ouvi nada – de fato, não tinha ouvido qualquer tipo de barulho senão o da chuva. Edmar a imitou, e quando debruçado no corrimão de madeira, apurou os ouvidos para que tentasse escutar qualquer coisa lá embaixo. Distinguiu o que pareciam ser passos. – Tem alguém lá.
            Sharlene o puxou pela camiseta para que recomeçassem a subida, dessa vez mais depressa. Quando entraram na sala, encontraram Fred observando a chuva pela janela.
            – Temos companhia – ela foi logo dizendo, assim que o homem se virou.
            – Quantos? – Fred empunhou a faca que trazia junto ao cinto, aquela que roubara de Edmar, e se dirigiu para a saída sem esperar pela resposta de Sharlene. A moça se virou para Edmar, alertando-o para que não fizesse qualquer tipo de gracinha, e deixou a sala. Mas não sem antes trancar a porta.
            E então estava sozinho.
            Ele esqueceu a arma. Edmar correu a sala com os olhos em busca do paradeiro da espingarda. Encontrou-a apoiada em uma das prateleiras no fundo da sala. Não tinha qualquer noção quanto a como usar aquela coisa, mas Fred e Sharlene não sabiam disso. Em ultimo caso, poderia apelar para a intimidação. Se eles não forem mortos lá embaixo.
            Apoiou-se na porta e manteve o ouvido rente à madeira para que pudesse escutar o que se passava lá fora. Durante longos e tortuosos minutos, tudo o que ouviu foi a chuva. Então, vozes. Eles estavam voltando.
            Edmar recuou alguns passos e apontou a arma para a porta. Aguardou.
            Ouviu a chave destrancar a fechadura, e quando a maçaneta girou sentiu um aperto frio na boca do estomago. Fred foi o primeiro a entrar. O homem parou num estalo ao encontrar o cano da espingarda apontado diretamente para o seu rosto, mas não aparentou em momento algum estar com medo.
            – Paradinho aí – Edmar repetiu as palavras que lhe haviam sido ditas quando foi emboscado. – Ou estouro seus miolos.
            Esperava qualquer tipo de reação, qualquer uma, exceto que Fred começaria a rir.
            – Vamos, me dê logo essa arma – estendeu as mãos para que pudesse alcançar a espingarda, mas Edmar recuou para fora de seu alcance. – Vai se arrepender disso, fedelho.
            Só então se lembrou de Sharlene. Procurou-a com os olhos e a encontrou parada atrás de um segundo rapaz, este desconhecido. Aparentava ser novo, não mais que dezoito anos. De cabelos e olhos escuros, tinha a pele tão pálida que as veias abaixo da mesma pareciam saltar para fora, evidenciando-se em seu rosto, pescoço e... braços. Um deles está enfaixado. Ele foi mordido.
            – Quem é esse? – perguntou, voltando a atenção para Fred.
            – Não importa – ladrou o homem. – Vamos, passa essa arma pra cá, e talvez eu não te machuque. Ou continue a encenação, e quando isso terminar eu juro que vou foder seu rabo com essa espingarda.
            – Eu acho que não.
            Fred investiu. Edmar puxou o gatilho. Nada aconteceu.
            Surpreso, sentiu a espingarda deslizar para longe de seus dedos quando foi puxada, para longo em seguida retornar com força contra seu rosto. Tudo escureceu por um momento, e a dor explodiu em sua cabeça quando sentiu o nariz se quebrar sob o impacto do golpe seguinte. Não chegou a sentir o corpo se chocar contra o chão, mas quando voltou a abrir os olhos, era lá que estava.
            Sua cabeça doía terrivelmente, e o mundo estava vermelho a seus olhos. Sangue. Estou sangrando. Olhou para Sharlene, que o encarava com uma expressão que meneava entre o receio e a vontade de intervir no que estava acontecendo. O recém-chegado, assustado, não desgrudava os olhos de Fred.
            Deve estar se perguntando se terá o mesmo destino.
            Então se voltou novamente para o homenzarrão, e viu seu pé descendo em sua direção. A pancada foi forte, e sentiu o gosto do sangue na boca quando teve o rosto prensado contra o piso. Então um chute no estomago lhe roubou todo o ar. Fez um esforço enorme para respirar, mas até aquilo lhe doía.
            Ouviu Sharlene resmungar alguma coisa, mas ela lhe pareceu tão distante que nem se deu ao trabalho de tentar entender. O peso sobre seu rosto diminuiu, até que se visse novamente livre. Poderia ter sorriso quando o ar voltou a preencher seus pulmões, mas parecia não se lembrar de como fazer aquilo.
            Então sua vista escureceu, e no momento seguinte já não sentia mais nada.





O texto acima não tem qualquer vínculo com a história original de Terra Morta e nem foi escrito por Tiago Toy. É uma adaptação do RPG mestrado no Orkut por Luan Matheus, escrita pelo próprio.

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