Relato de sobrevivência #02: A segunda chance
Há pessoas que a todo o momento dão sinais de que estão fadadas ao insucesso, a exercer por toda vida a incansável condição de escravidão, seja de onde ela venha, este sempre sofreu muito. Era hora de dar o troco.
Era o seu rádio de pilha o maior companheiro, pouco antes de se esvair ele contou que finalmente o dia havia chegado com excelentes notícias. Mal amanhecia e já acendia o pouco que restara do fogareiro a gás deixado na obra; esquentou o café velho e mordeu o pão que o dia de hoje amassou. Amassou pros outros, não pra ele.
Deixou o seu andar e foi caminhar pela rua, fazer um pouco de exercício e aproveitar um pouco da chuva que começou a vir em boa hora e pelo mês do ano não cessaria tão cedo. O barulho não incomodava mais, nem o andar lento e cambaleante, pra quem passou a vida entre bêbados e drogados, isso não era nada. Passava tranqüilo e imperceptível com as habilidades que ganhara com o tempo, alguma comida e muito líquido era mais do que o necessário, finalmente parou de suplicar por ela.
O céu é dos justos e num dia em que uma pequena névoa baixou sobre a depressão interiorana do estado de São Paulo, era chegada a sua vez. Naquela manhã resolveu caminhar e levava o rádio consigo, mesmo que já não funcionasse mais. Atravessou a rua e lembrou-se da esquina em que muitas vezes dormiu, aquilo era passado, queria era mudar de vida e estava disposto até a sangrar os pés. Como algum deus lhe foi generoso contrariando sua crença, sua sorte começou ao encontrar uma bicicleta, velha e até um pouco enferrujada, que seria mais uma fiel companheira; é de se ressaltar que depois de tanto tempo vivendo no fim do mundo, quando ele realmente chega, os mais preparados sobreviverão e ele queria ser um.
Mesmo atabalhoado por realmente comprovar o dito popular, conseguia dar suas pedaladas tortas após longo tempo e ao atravessar a rotatória, sabia que o perigo era eminente. Não conhecia mais o local e a agressividade dos sujeitos, pois sejam canibais, era algo assustador. Eles sentiam o cheiro de longe, tinham olhos vermelhos como fogo, pele suja e farrapos como vestimentas. Tinham um gemido aterrorizador e rosnavam como cães, fora suas nojentas escarras e secreções remelentas que escorriam do rosto ríspido e rígido.
Eles querem que o sofredor mais do que abandonar sua condição, venha a ter o trágico fim que tanto temia, pois esse motivo era mais que suficiente para ele acelerar e fugir avenida adiante, pra seu avô que da baia ao ribeirão veio a pé, isso não era nada.
Quando começara a chuva fina, a bicicleta já o havia carregado até uma extensa avenida que por meados do ano anterior havia deixado de se alagar, mas levou o nome da cidade para noticiários nacionais por muitas vezes. Estranho pensar que dias atrás havia acontecido a mesma coisa, pela última vez na história.
Todo molhado, ele precisava de um local pra se esconder e parou numa antiga oficina que sem luz e com som de água pingando lá fora era digna de atenção a qualquer outro som mais forte, e não quebrando nenhum protocolo chamou por pessoas, certificando-se que estava sozinho. Nessa certeza, caminhou para os fundos ao ver uma luz ainda acesa e lá encontrou outro homem, baixo e careca, segurando a mão de um cadáver em alto estágio de decomposição, feminino. Susto, taquicardia.
Sem nem ao menos perguntar nada, o homem que segurava a mão do cadáver explicou que para quem havia perdido os pais, dois irmãos e um filho antes de todas as outras pessoas resolverem virar monstros, isso não era nada demais. Explicou também que o cadáver era sua esposa, a única coisa que restou; havia sido atacada por um dos chamados canibais e que para ele o fim era este, segurar com todas as forças a esposa que fora forçado a matar num galpão sem comida e sem sinal de pessoas. Aquele que havia chegado de bicicleta ofereceu uma ajuda, suprimentos ou condução para que ele conseguisse viver. O homem que segurava a mão do cadáver se negou veementemente, mostrou o amor pela esposa, ficaria ali até que apodrecesse também, não do mesmo mal, mas do oposto, por ter em si viva a humanidade, carregaria para longe desse inferno sua alma para encontrar a esposa num paraíso que nem se quer sabe se existe. Pessoas por amor conseguem resistir a tudo, ele usava dessa mesma força para não resistir e deixar a morte mais próxima. Era perseverante.
Ao deixar a pequena sala, avistou a sua bicicleta que estava ainda na calçada e pensando não precisar mais dela, procurou por chaves de algum carro na oficina, para sua tristeza, estavam todas no contato de carros aos pedaços. Já haviam chegado antes dele e pego tudo de melhor, lembrando seus tempos num centro para desabrigados que foi forçado a passar uma temporada. Pegou a bicicleta e seguiu, antes comendo uns biscoitos que levara em sua sacola.
Conturbada avenida com seus carros, pedalando pela rua via as pessoas exibirem seus luxos e confortos nas inúmeras lojas de carro que por ali se instalaram com o decorrer dos anos. Ver que numa cidade que havia um carro para cada habitante antes do desastre, ao voltar a ver a imagem do presente ele conseguiu confirmar, todas elas vazias com suas portas mais que arrombadas. Uns e outros jogados no rio e batidos em postes para que o cenário se completasse.
Avançou alguns quilômetros e passava agora por uma continuação da mesma avenida que leva o nome de uma pessoa importante que deu fama a cidade em seu princípio de real desenvolvimento. Sabia ele que nela havia hotéis mas acima de tudo sabia que havia um supermercado e esse foi seu destino, pensamento rápido, pegaria mais sacolas de comida e viveria num dos hotéis por um bom tempo. Triste ver que ingenuidade não tem cura, mas que seja dele retirada a culpa por não conhecer bem o ser humano, uma das suas únicas desvantagens.
Não havia nenhum sinal dos monstros na avenida de entrada, os poucos que restaram não eram rápidos para alcançá-lo durante seu trajeto. Deixou a bicicleta encostada numa escada rolante, entrou no supermercado e logo cheirou algo queimando no ar, com as luzes apagadas foi fácil ver que era uma fogueira e ao redor dela cerca de dez pessoas, sem saber se eram humanos ou canibais, avançou sem dizer nada e sem fazer barulho pelos corredores em busca de algo. No mesmo momento, se levantaram três pessoas incrédulas com sua ação e acima de tudo, diziam que foi ousado ao entrar no mercado deles e começar a pegar as coisas como se fosse de qualquer um. Tentou se explicar, despertando a fúria do resto do grupo.
Eram definitivamente humanos. Cabelos arrepiados e em fuso, roupas amassadas, olhos bem arregalados e muito pálidos; bufavam, batiam barulhos e borbulhavam baba de raiva como animais, porém bem diferente dos seres lá de fora, estes eram conscientes. Esse mercado estava praticamente vazio, não havia nada senão algumas latas e papéis, o suficiente para alguém abraçar e disse que é seu. O grupo se viu ameaçado pelo invasor e como guerreiros tribais, se atribularam e trazendo tralhas, travaram uma ordem para o ataque.
Correram atrás do intruso com facas querendo espantá-lo ou até matá-lo por pensar que usufruiria o que era deles e de mais ninguém. Coitado, deveria esperar por mais uns quinhentos anos de terror antes que esse pensamento primitivo mudasse, essa raça egoísta ainda existia e com o passar desse curto tempo de péssimas experiências, ainda não havia largado os hábitos que talvez causaram tudo isso. Nosso intruso correu e com altos gritos desejou a morte para todo aquele grupo, antes que a própria chegasse. Ao alcançar a bicicleta, pegou suas sacolas com os suprimentos, montou e saiu em disparada, para o mais longe possível.
No pedalar dos próximos metros, ele pensou se esses humanos estavam doentes, mas começou a comparar com os outros de que havia fugido e que ainda via vagar pela rua aos poucos. Num lampejo de memória ele se lembrou, se lembrou de quando tomou uma facada de um adolescente por estar pedindo dinheiro e da outra vez que teve dois dedos quebrados quando uma dona-de-casa bateu a porta entre seus dedos. Os seres que babavam e não falavam, não atacam sua própria espécie e de alguma forma contraíram essa condição. Os outros, seres conscientes, já nasceram como são.
Na literatura e nos filmes, uma pessoa é sempre o herói imune que salva a todos nós, aquele homem da oficina não tem nenhuma das características ditas como “sintomas” desses monstros, será ele nosso herói? Será ele o sobre-humano que nos salvará? Definitivamente não, mas se o mundo tivesse seis bilhões deles, talvez sim.
A chuva volta a cair e ainda atordoado pela experiência do supermercado, este que pedala resolveu passar frio e se esforçar para ver se esquecia de tudo. Seguiu por mais três ou quatro quilômetros adiante e se lembrou de um cruzamento de avenidas muito movimentado, ele vinha do oeste, ao norte encontraria um shopping, a leste seguiria para a estrada e ao sul ele viu sua saída, um bairro residencial que havia sido fechado e evacuado provavelmente por autoridades. Logicamente, ele não sabia disso e resolveu entrar no bairro a procura de pessoas.
Já escurecia, nosso amigo queria um abrigo seco para dormir, foi então que ao final de uma grande avenida que corta o bairro ele encontrou uma igreja. Largou a bicicleta na calçada e encontrou portas fechadas, mas não trancadas, entrou e já se sentia em casa. Uma casa que dessa vez tinha dono.
Não se lembrava da última vez que havia entrado numa igreja, viu adiante um homem ajoelhado que provavelmente estava rezando. No caminhar até ele, refletiu sobre o que acreditava; onde estava o ser superior que é misericordioso e que em sua plena bondade salvaria a toda a humanidade? Depois do que viu hoje, tinha em sua plena convicção que um deus nunca existiu nem nunca existirá, até que com um sorriso amarelo, interrompeu o homem que rezava, pediu licença e lhe perguntou sobre água e comida além da permissão para ficar abrigado nesse templo. Alguns segundos de silêncio depois, o homem que rezava respondeu que havia alguns aposentos no fundo da igreja e que a comida que ele está vendo nas sacolas pode durar por alguns dias. Boa notícia finalmente. Os dois se retiraram para os fundos.
Passaram os dois recém conhecidos conversando por um longo tempo, do diálogo ficou a experiência que pela noite as criaturas por algum motivo são mais violentas e esmurram, empurram e chutam a porta ta igreja, o barulho é aterrorizador, porém as portas são muito resistentes e seguram o impacto. Após alguns minutos, o barulho para e o homem prestes a dormir volta a rezar. Sem interromper dessa vez, nosso amigo que pedalou tanto até um lugar seguro, já cansado, perguntou se Deus tinha alguma coisa a ver com tudo isso, esperava tirar essa dúvida da cabeça, embora não fosse letrado nem nada, era algo que lhe tirava o sono.
Para sua surpresa, a explicação do religioso o convenceu. Para ele, Deus que criou toda essa catástrofe, assim os seres humanos que tanto degradavam uns aos outros aprendessem que existe coisa pior e que a sobrevivência ou não dessa raça só dependia deles mesmo e do espírito de união de cada um. Deus fez sua seleção natural, os sobreviventes, segundo a igreja, seriam os dignos do paraíso, os demais padeceriam diante da fúria divina. Para quem escuta e acredita, é bem plausível. O homem só muda quando está à beira do precipício, nesse caso, é agora.
Passaram-se 24 horas desde quando ele havia chegado à igreja, saiu pra fora por um momento e se deparou com um carro em alta velocidade, fora de controle que vinha em direção a um poste do outro lado da rua. Dito e feito, o carro bateu, tombando o poste e chamando a atenção de alguns monstros de estavam espalhados ao redor e estes chamaram a atenção de mais e mais até que já era uma multidão a redor do carro. O motorista que estava um pouco arranhado, mas salvo pelo cinto de segurança, quebrou o pára-brisa da frente e escapou por cima do carro e correu até a igreja, atraindo a atenção da multidão. Parece um suicida.
Nosso amigo puxou o maluco desgovernado para dentro do templo e fechou as portas, aqueles canibais loucos esmurraram a porta como se fosse noite, como eram bem mais, as dobradiças começaram a ceder e finalmente entraram em pânico, os três. Sem ao menos se conhecerem já sentiam a necessidade de se ajudarem, foi assim que o religioso os guiou para uma saída por um gramado ao fundo da igreja. Quando a porta de entrada do tempo cedeu, os três entraram em desespero e correram muito, não havia outra escolha. Foi quando algo raro aconteceu, aquele que havia deixado sua bicicleta para trás, pisou num dos inúmeros buracos no asfalto e caiu no chão, bem no momento em que um dos monstros estava mais rápido que o grupo e a poucos metros já preparando seu ataque, ouve-se um estrondo. Um tiro, certeiro na cabeça. O que havia sobrevivido ao acidente estava armado, salvou uma vida e ao ajudar a erguer o que havia caído, definiu sua ação como solidariedade.
Os três caminharam juntos, agora dando a volta por um beco e chegando a uma avenida, o cenário era de destruição total, cenário digno de pós-guerra. Uma coisa chamou a atenção dos três, um homem caído no chão com um capacete, havia marca de um tiro no peito. Vasculhando o corpo, aquele que estava acostumado a pedalar se viu feliz quando encontrou uma chave, era da motocicleta jogada ao lado do corpo, estavam então felizes porque dois pelo menos poderiam sair e buscar ajuda para o terceiro. Não nos planos daquele que possuía a arma, que a mirou e pediu as chaves da moto. O religioso com certa veemência baixou a mão do armado e lhe pediu calma, todos deveriam sair juntos da situação. Sua ação foi retribuída com um tiro no pescoço, daqueles para sangrar muito até a inevitável morte.
O que sobreviveu, entregou as chaves. Nada podia fazer, não queria morrer de jeito nenhum, porém dessa situação ele saiu entristecido e pensativo ao ver o armado sair em disparada em direção ao escuro. Havia largado seu rádio na igreja e já não havia mais comida ou bebida alguma, somente com a companhia da luz da lua, pôs-se a pensar que a solidariedade que o armado teve ao salvar sua vida não o tirou de sua condição, de refém; assim como nenhuma resolve nada. Esse homem cansado passou a vida dependendo de doações, dependendo a piedade das pessoas armadas com o dinheiro, nunca havia recebido nada que o fizesse mudar de vida e por mais que ele tratasse os desconhecidos muito bem, sempre foi julgado como se fosse lixo, para abastecer uma conta bancária invisível que determina que os que fazem a chamada caridade, estarão sempre superiores aos que sofrem todos os dias.
Suas esperanças eram o que o deixava continuar a andar, ele sabia bem no fundo que estava certo, que nesse apocalipse ele conseguiria prosperar, sair vivo e mudar de vida enquanto todos os outros colhiam o fruto da desgraça que criaram sem perceber. Essa noite, ele passou como uma noite qualquer, deitou-se sobre sacos de lixo e adormeceu no sereno, mas dispôs-se a acordar e fazer daquele dia a diferença.
Acordado naturalmente bem cedo, não fez outra coisa senão olhar ao redor e reconhecer o local para poder chegar onde queria. Seu objetivo era uma avenida grande e luxuosa, pensava ele que agora sem nada acompanhando, conseguiria encontrar pessoas vivas. Andou um quarteirão e se viu noutro cruzamento e já de longe reconhecia os grandes edifícios, sabia que não tinha mais nada o que fazer senão indo de pé em pé, passada por passada, progredir para os prédios, parando por poder para pensar nos porquês de pouca pobreza de poucos. Riqueza dos ricos que rolaram e riam, rodando rápido o relógio. Até hoje. Quem hoje quer rir, é este que de tanto caminhar chegou onde queria e encontrou o que imaginava ver, viu. Portas abertas e cenário de evacuação, tudo largado no meio do caminho e para ele era o paraíso, pois então escolheu um edifício qualquer e entrou, estava diante do seu primeiro natal de verdade, todo aquele prédio só para ele.
No instinto, passou pelo saguão e viu nas paredes um botão, tentou chamar o elevador e ele não respondeu, bateu na porta e nada. Não havia eletricidade, o que ele decidiu fazer foi se cansar mais uma vez e subir até a cobertura pelas escadas, sofrimento que valeu a pena com toda a certeza. Havia várias portas, ele entrou em uma que estranhamente ainda estava aberta; ao entrar depara-se com um pequeno espaço de quarto, cozinha e banheiro, porém exageradamente belo e arrumado como se o tivesses acabado de limpá-lo. O cheiro era agradabilíssimo, desconhecia o nome da fragrância mas era de lavanda, e isso lhe causou a estranha vontade maior ainda de fazer parte de tudo aquilo. Abriu a porta de um armário e encontrou um terno, muito bonito por sinal. Era hora de realmente parecer outra pessoa. Fechou a porta do apartamento, despiu-se dos trapos que vestia e entrou no banheiro.
Ligou a água quente do chuveiro e para sua surpresa funcionou, o prédio tem sua própria reserva aquecida, tomou o banho que nunca havia tomado em sua vida, até clareou alguns tons na escala do bege. Ao terminar e se secar com uma toalha branca, sentiu mais uma vez aquele aroma e decidiu se barbear, sem nem olhar, abriu uma gaveta do móvel que lá havia e puxou uma lata de espuma e uma gilete. Fez o serviço completo e como não podia deixar de ser, passou a mão no espelho embaçado pra conferir o serviço bem feito em seu rosto pardo, de olhos castanhos, cabelo um pouco liso e um pouco crespo apresentando pequenos e indesejáveis grisalhos, poucas rugas, orelhas pequenas e um nariz proeminente.
Saindo do banheiro pegou o terno e o vestiu; preto com costura fina, detalhe nos botões das mangas, camisa e calça da mesma cor e uma gravata que tendia ao bordô, daquelas modernas com zíper e nó pronto para os iniciantes. Finalmente se sentindo o rei, preparava-se para descer as escadas e procurar um carro na garagem para fugir, quando percebeu que a porta do apartamento não abria de maneira nenhuma, era necessário um cartão que ele não possuía. Estava trancado e por um momento se desesperou em procurar outra saída, mas repensou e viu que devia aproveitar seu tempo lá, vendo que havia uma escada para o terraço ele subiu e se deu conta de que estava num grande jardim bem no topo do prédio. Nele havia pequenos vasos com florzinhas, vários deles, assim sendo ele ajeitou-os em forma que todos fizeram um “SOS”. Pronto, cedo ou tarde alguém viria buscá-lo, ele sabia que quando havia uma catástrofe, helicópteros sobrevoavam a cidade e com certeza iriam avistá-lo, senão ele simplesmente se jogaria da cobertura e morreria como sempre havia desejado, no topo.
Retornou ao quarto e agora havia notado que ao lado da cama havia um frigobar muito pequeno, por curiosidade ele o abriu e se viu mergulhar num passado que foi difícil de relembrar. Na sua vida sempre teve dois vícios; a cachaça e o jantar, assim ele chamava o último que freqüentemente fazia uso, uma ou duas cheiradas dentro do saco para se sentir satisfeito e esquecer-se do sono e do frio também. Voltando ao frigobar, ele havia encontrado um litro de pinga e mais um pacote de pó branco, sabia que era a tal da cocaína, pois havia provado algumas vezes. Decidido então a relaxar e curtir o seu momento de glória começou a beber a cachaça como se fosse sua primeira, se deliciando a cada gole e o gosto da cana trazia de volta memórias e atos de loucura, cenas até já um pouco embaralhadas. Já olhando meio torto para as paredes, resolveu então provar da droga que em sua vizinhança no passado era a mais cara e desejada. Foi sem cerimônia, rasgou o pacote e cheirou o que estivesse ao alcance, ia rolando no chão, colocando o pó sobre o tapete, ia fazendo a sua loucura até que quando restava apenas um pouco ele colocou tudo na garrafa e pinga e bebeu.
Começou a passar mal, se deitou na cama soluçando um pouco e percebendo o abuso, as cores já se embaralhavam e a luz de um sol nublado passando pela janela era como um holofote, o teto começava a rodopiar e suas mãos suavam frio; ao piscar os olhos com alguma força incomodado com a luz, o corpo apagou e a mente ficou.
Escuridão escrita sobre escravos estava especialmente esclarecida, ex-sofredor espumava e pulsava pujante puro pútrido do coração correspondido correndo como carro na confusão de cocções e coesões coesas que com cocos confundia vendo a voar aviões e viações, via vinho e vinha verde, via o rádio ratificar o rastelo que retirou o remédio da realidade, resistindo relaxou e acelerava acelgas e ácidos acéticos assim sim ou assim sentia. Terra de teias de teísmos técnicos tendia ao Tejo, tectônicas tênues terminaram no pobre podar das pedagogias, pois polemica em pólen podia perceber. Telhas telham, televisões tele portadas e telegrafadas por telejornais televisivos tendiam todos a torturar. A Companhia Paulista de Força e Luz informa que devido a uma sobrecarga, estaremos interrompendo o fornecimento de energia para sua residência com previsão de retorno após algumas horas. Blecaute.
Ouvia mas são sentia, sem se quer se movia. Sem abrir o olho, só prestou a mais devida e importante atenção:
- Ele vai ficar bem?
-Com toda a certeza, tentou se suicidar pensando que não viriam atrás de mais sobreviventes. Bebeu e se drogou até ficar anestesiado e com a faca que encontramos embaixo do colchão, deduzo que ele desmaiou antes que conseguir pegá-la e usá-la.
- Qual o nome do sujeito?
- Leandro Alves de Moura. Assim diz os documentos encontrados dentro do terno dele. Que por sinal precisam dar uma renovada, ele envelheceu e mudou muito, olha essa foto, parece com ele aqui na cama?
- Sei lá! Parece até um pouco. Sortudo ele, muitos não sobrevivem. Espero que ele aproveite a nova vida, escapou por muito pouco.
AUTOR: PEDRO TONETTO
AUTOR: PEDRO TONETTO
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